Opinião

A loucura da arte

João Pereira Coutinho
O meu e-mail é bicho repetitivo e vulgar. Todos os dias, sem eu saber como ou por que, lá aparece a mensagem de um desconhecido que tenciona deixar-me toda a sua fortuna como herança. São milhões e milhões de dólares que apenas exigem um telefonema (meu) para um número exótico qualquer.

Não são as únicas ofertas que me recebem pela manhã. Com igual regularidade, encontro promessas hidráulicas de que é possível aumentar o tamanho do meu pênis. Bizarro: nunca me lamentei sobre o assunto. Mas a mensagem não mente: dez centímetros, mínimo, e não se fala mais disso.

Bem sei que não sou caso singular. Amigos e colegas recebem correspondência igual. Mas eu gostaria de acrescentar à lista um terceiro tipo de prosa: leitores que pedem conselhos sobre a "loucura da arte", como dizia Henry James. Que livros devo ler? Quantas horas devo trabalhar? E como "escrever em público" (jornais, revistas, sites etc.)?

Raramente respondo a esses pedidos. Primeiro, porque eu próprio não tenho nenhum segredo estilístico ou bibliográfico para partilhar. Mas sobretudo porque o mais importante da expressão "escrever em público" não é a palavra "escrever". É a palavra "público".

Um exemplo, que acontece muitas vezes: estou num "contexto social" (bela expressão) e cruzo-me com alguém que critiquei no passado -por escrito ou na TV. Não que eu me lembre. Não me lembro.

Mas a pessoa em questão se lembra. Aliás, a principal lição que levamos destes anos de colunismo é que os objetos do nosso desafeto nunca se esquecem.

Duas reações. Ignoram-me (sem eu saber por que); ou cumprimentam-me (com uma impecável hipocrisia). E nunca resistem ao comentário: "Aquele texto que escreveu sobre mim no dia 14 de fevereiro de 2003 foi muito injusto. Diga lá: foi ou não foi?".

Eu fico a olhar para o personagem como um boi na presença de Versalhes e, por mais que me esforce, não consigo encontrar, no meio de milhares de textos, o crime de lesa-majestade.

Uma vez mais, a vítima consegue: "Aquela coluna em que dizia que eu era tão inteligente que deveria legar o cérebro, ainda em vida, para pesquisas científicas".

Rio (forçado), faço de conta que me lembro, o outro ri-se também -mas não desarma: "Diga lá: foi injusto ou não foi?".

"Um bocadinho", concedo, a olhar para os amendoins que tenho na mão e com uma vontade houdinesca de desaparecer por vergonha. Alheia.

E o inverso também acontece. Estou novamente num "contexto social" (as minhas desculpas) e alguém está desconfortável com a minha presença. Na pausa da conversa, o personagem murmura, com um riso nervoso: "Você tenha calma, hoje não trago colete antibala".

Eu reduzo-me novamente a uma condição bovina e ele acrescenta: "Por causa daquele texto sobre [uma bosta qualquer], em que eu dizia que o João [outra bosta qualquer]".

Então faz-se uma luz -pequena, pequenina- na minha cabeça e há a memória de um zumbido. "Já nem me lembrava", digo então, mais nostálgico que ofendido. E tento aliviar o momento: "É melhor vestir o colete!". Gargalhadas. Grandes amigos.

Minto? Antes mentisse. Escrever em público pode exigir trabalho, coragem, talento e o diabo a quatro. Em minha defesa, acrescento uma espécie de apatia psíquica que consiste em ser indiferente ao que dizem sobre nós.

E que se agravou com o tempo. "Leste o que escreveu [nome do vilão] sobre ti?", perguntam os amigos, alarmados. "Não. Ou li? Já nem sei." E nos segundos seguintes falamos do tempo, ou do futebol, ou da vida sexual de outros amigos.

Só uma vez encontrei a definição perfeita da minha condição em entrevista de Tom Stoppard. "O que as pessoas tendem a subestimar", dizia ele, "é a minha capacidade para não estar assim tão interessado."

Essa capacidade, que em mim será patológica, não é algo de que me orgulhe. Mas as coisas são como são: não me incomodar, não querer saber, não estar interessado -são como os cabelos brancos que aparecem no espelho da manhã. Ervas daninhas semeadas pelo sono e pelo tempo.

Se o leitor tenciona "escrever em público", a primeira pergunta não é saber se tem talento, ou livros, ou ambos. É consultar um bom especialista e ter a certeza que há algo de muito errado no seu exame psicológico. 

Original aqui

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