Opinião

Crônica de quatro faces

Antonio Prata
A primeira gaveta, a dos talheres, é a mais organizada. Divisórias separam os garfos, as facas e as colheres grandes; os garfos, as facas e as colheres de sobremesa; por fim, num escaninho perpendicular, ficam as colherinhas de café. Essa arrumação militar me traz sentimentos contraditórios. Por um lado, vendo cada coisa em seu lugar, me tranquilizo: temos aqui um lar, um teto, um ninho seguro para criar os filhos, construído dia a dia –garfo a garfo– com o suor do nosso rosto. Sei que a última frase soou meio clichê. É que o lugar comum, como a própria expressão aponta, traz o conforto do reconhecimento –e eis aí a segunda parte dos sentimentos contraditórios sugeridos pela gaveta: essa tranquilidade desperta em mim a ânsia do rebanho. Trata-se, sem dúvida, de uma gaveta totalitária. Ali dentro não há qualquer possibilidade de dissenso: uma colherinha de café que resolva fazer companhia pras facas é imediatamente reconduzida ao seu compartimento. Stalin seria um bom patrono para a primeira gaveta. Kafka saberia retratar bem seus horrores. Ou Orwell? (No fundo da primeira gaveta, através de uma pequena "Teletela", o Grande Irmão assiste a tudo.)

A gaveta de baixo é diferente. Não há divisórias. Todos se misturam. Parece uma festa. Uma festa do jet set , claro, porque ali não há sombra de padronização, cada um é único, o melhor de sua área: a faca de churrasco flerta com a espátula de silicone, o saca-rolhas conta uma piada pro descascador de cenoura, a escumadeira cochicha algo para o funil. Se a primeira gaveta veste farda, a segunda é esporte fino. Lá no fundo não há "Teletela", mas um globo de espelhos.

A terceira gaveta também é uma festa, só que mais esculhambada. Ali moram os utensílios que a gente não usa. Uma geringonça de espremer batata, colheres de pau lascadas, uma faca de pão com o cabo derretido, ancestrais garfinhos de fondue. (Nunca fizemos fondue. Será que ainda temos a panela?). Pensando bem, talvez eu esteja sendo preconceituoso: por que "esculhambada"? Talvez, festa boa, mesmo, seja a da terceira gaveta. Não aquele clima de cercadinho VIP da segunda, mas de jam session num hotel decadente. Bem mais interessante bater um papo com a faca de cabo queimado e ouvir a história de sua cicatriz do que aguentar a espátula da Spyce, no andar de cima, contar vantagens sobre seu cabo de silicone. Britney Spears, Tom Cruise e Cristiano Ronaldo estariam na segunda gaveta. Itamar Assumpção, Jacques Tati e Sócrates, na terceira.

E a quarta e última gaveta? Pois é, taí uma questão que eu nunca consegui responder. A quarta gaveta é um limbo, um "achados e perdidos" onde se misturam o manual de instruções da geladeira, uma caixa de palitos Gina, três jogos americanos (diferentes), um toco de vela, araminhos de fechar pão e uns hashis de japonês delivery ainda com telefones de sete dígitos. É como se, saindo da organização platônica da primeira gaveta, fôssemos descendo rumo à desordem, até chegar à indeterminação total, onde tudo perde o sentido. Perdoem terminar assim essa crônica natalina, sem vislumbre de manjedoura ou cheiro de panetone: mas essas gavetas, mas esse conhaque, botam a gente comovido como o diabo.

Original aqui

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