Opinião

Depois da avalanche

O Estado de S.Paulo
Foi um desfecho, mas não um epílogo. A destituição do presidente Viktor Yanukovich pelo Parlamento ucraniano, no sábado, depois de sua fuga de Kiev, completou o ciclo de três meses de protestos, repressão e, afinal, insurreição popular. As manifestações começaram em novembro quando, sob pressão do líder russo Vladimir Putin, Yanukovich recuou de um acordo comercial com a União Europeia (UE), potencialmente fecundo para o seu país à beira da bancarrota. Putin ofereceu-lhe em troca uma ajuda de US$ 15 bilhões, sob a forma de compra de títulos ucranianos.

Na semana passada, a escalada de confrontos deixou mais de 80 mortos, entre civis munidos de coquetéis molotov e as tropas mobilizadas para dispersá-los do centro da capital. O morticínio tornou inócua a tardia tentativa de um acordo entre governo e oposição, mediado por diplomatas da UE e da Rússia. Depois de passar a sexta-feira em claro, os negociadores, menos o russo, aprovaram um programa que atendia às demandas originais da Praça da Independência, ponto focal do movimento.

Yanukovich concordou em abreviar seu mandato, com a antecipação das eleições para dezembro. Até lá, o país seria dirigido por uma coalizão que incluiria a oposição parlamentar, reduzidos os poderes presidenciais aos vigentes até 2010. O governo ainda abriria mão do socorro financeiro russo. Mas, quando um dos principais líderes oposicionistas, o boxeador Vitali Klitschko, começou a anunciar o que imaginava ser uma boa notícia foi recebido com vaias. Os fatos haviam adquirido o ímpeto de uma avalanche revolucionária.

Deposto Yanukovich, substituído interinamente pelo recém-eleito presidente do Parlamento, Oleksander Turchinov - que não tardou a instar a Rússia a reconhecer "a escolha europeia da Ucrânia" -, convocadas eleições para maio, formado um governo de transição, libertada a ex-primeira-ministra Yulia Timoshenko, ordenada a prisão do foragido Yanukovich, uma página histórica teria sido virada. Faltou, porém - se é que seria possível - combinar com os russos, os imperdoáveis perdedores, na pessoa de Putin, da reviravolta.

Desde tempos imemoriais, Moscou considera a Ucrânia uma extensão da Pátria-Mãe. Foi ali, nos anos 800, que se estabeleceram os russos, os ancestrais da principal etnia do futuro império. Anexada pela União Soviética, da qual se tornaria independente em 1991, com a derrocada do comunismo, a Ucrânia tem uma face ocidentalizada, em cidades como Kiev e Lviv, e cerca de um terço de sua população ligada pela geografia, a cultura e o idioma à Rússia. Esta, por sua vez, tem em Sevastopol, na Crimeia, a sua maior base naval.

Yanukovich se elegeu graças aos votos que lhe deram em 2011 os eleitores de alma russa do leste e do sul. E Putin não só acaba de assistir, impotente, à sua queda - depois de ter-lhe recomendado que esmagasse o "terrorismo" na capital -, como foi golpeado por uma perversidade do destino. O advento da nova ordem política ucraniana coincidiu com o fim da Olimpíada de Inverno de Sochi, no Mar Negro, compartilhado com a Ucrânia. A um custo declarado superior a US$ 50 bilhões, os Jogos foram concebidos para exibir ao mundo o poderio e a opulência da "nova Rússia" de Putin.

Depois de 48 horas de silêncio, o Kremlin reagiu ontem com uma dura nota que acusa Kiev de atentar contra os direitos da minoria étnica russa, numa referência à decisão do Parlamento de abolir o russo como segundo idioma nacional. Em choque direto com os Estados Unidos, o texto condena a convocação do pleito de maio, exigindo antes mudanças constitucionais sujeitas à consulta popular. Assim como o primeiro-ministro Dmitry Medvedev, que atacou o Ocidente pela "aberração" de legitimar o governo dos "mascarados que percorrem as ruas de Kiev portando fuzis Kalashnikov", a nota culpa a União Europeia por se entregar a "cálculos geopolíticos unilaterais" e de não avaliar devidamente "os atos criminosos dos extremistas, incluindo neonazistas e antissemitas". Não é de crer que o revide de Putin se limite às palavras.

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