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EUA: dez anos apagando o Iraque – volume 2

Concluindo sua análise sobre a invasão norte-americana, a partir do pensamento de Naomi Klein, Márcia Denser mostra como o Iraque foi vítima de um golpe ideológico ao avesso

Márcia Denser
Na seqüência do tema, segundo Naomi Klein[1], para os estrategistas da invasão do Iraque em 2003, a resposta à pergunta sobre “onde enfiar as agulhas” (onde bombardear) parece ter sido: em todos.

Em 1991, durante a Guerra do Golfo, cerca de 300 mísseis Tomahawk foram lançados em cinco semanas, mas em 2003 no Iraque foram despejados mais de 380 em um único dia! Entre 20 de março e 2 de maio – as semanas dos “principais combates” (parece piada), as forças armadas americanas lançaram mais de 30 mil bombas, 20 mil mísseis teleguiados – 67% do número total jamais alcançado.

Outro elemento do manual de Choque e Pavor é sua consciência acurada da guerra como um espetáculo do noticiário televisivo, colocado no ar para o mundo todo, pois “quando as filmagens desses ataques são transmitidas em tempo real pela CNN, o impacto positivo de apoio à coalizão (EUA) e o apoio negativo no apoio potencial às ameaças podem ser decisivos”, afirma o manual. Afinal, desde o começo, a invasão foi concebida como uma mensagem de Washington para o mundo, expressa na linguagem de bolas de fogo, explosões ensurdecedoras e cidades estilhaçadas.

A agregação que Donald Rumsfeld fez de seu know-how técnico e midiático do mundo empresarial colocou o marketing do medo no centro da doutrina militar dos EUA. O Iraque foi submetido a esse experimento de tortura em massa durante meses, tendo o processo se iniciado bem antes que as bombas começassem a cair.

Quando a guerra começou, os habitantes de Bagdá foram submetidos à privação dos sentidos numa escala maciça. Um por um, os canais sensoriais da cidade foram cortados: os ouvidos foram os primeiros, ao se cortarem as transmissões de rádio, tevê e telefone. A seguir, os olhos: as explosões não eram vistas, pois, num instante, a cidade de 5 milhões de pessoas foi jogada na mais completa escuridão.

Os bombardeiros feriram gravemente Bagdá, mas foi a pilhagem – feita sem controle pelas tropas de ocupação – que serviu para apagar o coração daquilo que foi o país.

Centenas de saques, como ao Museu Nacional do Iraque, roubaram nada menos do que os registros da primeira sociedade humana. A Biblioteca Nacional, com cópias de todos os livros e teses publicados no Iraque, virou uma ruína carbonizada. Exemplares do Corão, ilustrados e datados de mil anos, desapareceram do Ministério de Assuntos Religiosos que virou uma concha queimada e vazia.

Como uma espécie de lobotomia, a memória profunda de uma cultura inteira, que perdurou por milhares de anos, foi eliminada. Segundo o próprio Washington Post: “Se Bagdá é a mãe da cultura árabe, esta foi apagada”.

É difícil de acreditar, mas aquele era exatamente o plano de jogo de Washington para o Iraque: chocar e aterrorizar o país inteiro, arruinar deliberadamente sua infra-estrutura, não fazer nada diante da pilhagem de sua cultura e história, depois tornar tudo aquilo “correto”, por meio de um suprimento ilimitado de utilidades domésticas ordinárias e fast food tipo DVDs, Pringles, McDonald’s e Pizza Hut. O Iraque seria comprado com cultura pop!

No plano original dos EUA, o Iraque viria a se tornar uma fronteira, como a Rússia fora nos anos 90, mas, desta vez, seriam as empresas americanas – e não indústrias locais ou competidores europeus, russos e chineses – as primeiras da fila a ganhar dinheiro fácil e nada haveria de deter até mesmo as mudanças econômicas mais dolorosas porque, ao contrário das “reformas” aplicadas à antiga União Soviética ou África ou América Latina, a transformação não envolveria uma dança bem comportada entre funcionários do FMI e políticos locais grotescos, enquanto o Tesouro dos EUA se plantava na linha de frente dos tiros, no hall de entrada.

No Iraque, Washington eliminou os intermediários: o FMI e o Banco Mundial foram relegados a um papel pífio e os EUA estavam no front & no centro: Paul Bremer, a autoridade da CPA, era o governo: não havia nenhuma razão para negociar com o governo local!

De fato, todas as forças que dilaceram o Iraque de hoje – corrupção furiosa, sectarismo selvagem, fundamentalismo religioso e a tirania dos esquadrões de morte – estão sincronizados com a implantação do anti-Plano Marshall de Bush. Após a queda de Saddam Hussein, o Iraque precisava e merecia desesperadamente de restauração e reconciliação, um processo que só poderia ter sido feito pelos próprios iraquianos.

Em vez disso, no momento crucial, o país foi transformado num laboratório capitalista criminoso – um sistema que jogou indivíduos e comunidades uns contra os outros, eliminou centenas de milhares de empregos e formas de vida, substituindo-os pela impunidade dos ocupantes estrangeiros.

O atual estado de desastre no Iraque não pode ser reduzido à incompetência e ao nepotismo da Casa Branca de Bush, nem ao sectarismo e tribalismo do Iraque. É um desastre tipicamente capitalista, um pesadelo de ganância sem limites desencadeado pelo rastro da guerra.

O fracasso do Iraque foi criado pela aplicação fria e calculista da ideologia da Escola de Chicago em estado mais puro. O que se seguiu foi o resultado dos vínculos entre a “guerra civil” e o projeto corporatista que estava no cerne da invasão.

Um processo que joga a ideologia de volta na cara do agressor, feito bumerangue. Em resumo: um golpe ideológico ao avesso.

[1] In A Doutrina do Choque – a ascensão do capitalismo de desastre. Rio, Nova Fronteira, 2008.

Publicado originalmente no "congresso em foco"

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