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Ficções: Caim manda lembranças. De novo

“Não é possível que comparar biquínis e trocar impressões sobre a novela das oito seja a vida, porque neste caso alguém deve estar brincando”

Márcia Denser
“Mas se alguma coisa havia aprendido era
Que a sabedoria nos chega quando já não
Serve para nada”

Gabriel Garcia Marquez

(Mas isto Júlia, uma espécie de Caim feminino, não poderia prever aos trinta e poucos anos, enquanto vagava pelo casarão vazio da família). Afinal, é preciso reconhecer que tenho uma espécie de gênio para passar o fim de semana, pensou Júlia botando gelo no copo. Mas se tinha de beber, por que não no clube em pleno sábado com 38 graus à sombra? Por que novamente cedia à inércia que opunha uma feroz resistência a contatos sócio-esportivos na exasperante certeza de estar adiando indefinidamente a vida (ha, a vida, assim que escrevo sinto nojo, não é possível que comparar biquínis e trocar impressões sobre a novela das oito seja a vida, porque neste caso alguém deve estar brincando), algo que parece reiterar minha covardia a cada dia não vivido, perdido irreparavelmente.

Imóvel ao pé da escada, cabeça reclinada para trás, Júlia acariciava a bola de vidro cujo brilho fosco no limiar do corrimão duplicava a sala lúgubre que a ironia e o mau humor só podiam classificar de monstruosa natureza morta. E o adjetivo absurda também se ajusta admiravelmente, pensou Júlia observando as cadeiras de estilo vagamente ministerial, as pesadas arcas com aquele ar atravancado de vacas adormecidas, reposteiros, painéis, almofadas, canapés, estofados castanhos e ameaçadores, mesinhas chippendale, abajures, pedestais de bronze, espelhos, espelhos, espelhos, umas cortinas cor de coágulo que zoneavam a sala em raios inflamados reproduzindo essa atmosfera asfixiante de túmulo faraônico.

A casa inteira parecia ter sido decorada por um velho facínora com os restos do saque de navios naufragados nas costas de Chipre, prostíbulos de New Orleans e pensões de Brighton. Júlia sorriu ao decorador ausente: nunca te chamei de velho facínora, papai. Não faria sentido, o velho era honesto feito uma mula: até a tua honestidade era um defeito, papai. Mas, de certo modo, a monstruosa natureza morta continha a tua presença e a de Vivien e de Amanda, parecendo reter nossa essência remota, constituindo uma espécie de síntese, apogeu e decadência, os escombros duma família diaspórica: a tua herança, Júlia: mas não meu patrimônio, pensa.

Separados, Álvaro e Vivien há muito haviam deixado o velho sobrado, Amanda se casara e Júlia, embora tivesse ansiado viver sozinha todos os dias da sua vida, quando finalmente teria podido libertar-se, Júlia cá estava, vagando por entre escombros, como se algo resistisse na treva, algo que duvidava, algo que persistia sussurrando o que Júlia não queria ouvir porque se iludia acreditando que se eles tivessem tido uma chance teria sido possível, que todos aqueles anos que viveu, que vivemos, porque então era o plural daquilo que podíamos chamar uma família, até que começou a se esmigalhar miudamente, inevitavelmente carunchado por dentro o edifício do tempo começou a ruir, os pilares do altar onde eles juraram atar sagrados laços eternos que se afrouxaram naquele sobrado da Aclimação, assombrado agora por outras vozes, outros pavimentos (may I, Truman Capote?), na mão que já não se completa em carícia, no abraço que se esquece pendente do corpo, no passo que se afasta e se aproxima, que se afasta e se reaproxima,que se afasta e desce as escadas e sai batendo a porta, deixando um soluço enrodilhado no patamar, o tango em diagonal, um gato de porcelana, Aníbal Troillo amordaçado ao verde que te quis Corrientes e o telefone tocando, ainda e inutilmente num sobrado da Aclimação, como se todos estivessem mortos.

Júlia atendeu no quarto toque: Amanda, a voz ansiosa de Amanda do outro lado do fio. Há quanto tempo não se falavam? Há quanto tempo se evitavam? Pensa: meses. O bebê, Júlia, pode vir?/…/ amanhã à tarde, Borelli antecip/…/ não, ninguém, Vivien, tia Jane e aquela idiota/…/ você sabe quem/…/ claro/…/ frango na geladeira e dois litros de uísque legitimamente falsificado, reserva especial com estricnina/…/ mórbida, eu?/…/ Borelli: repouso, vallium e chá de tília, minha filha, ele consegue ser imbecil até de costas/…/uns discos e aquele teu roupão de banho/…/na quarta dose/…/ é, o calmo desespero/…/ rápido, Hehl.

Júlia manteve o fone em suspenso por segundos até que a sirene da linha aberta cortasse o fio que o amarrava ao tempo, desobstruísse a canalização subterrânea, reabrindo antigas feridas que sangrariam pelos esgotos da memória e deságuam num mar interior que o coração desconhece.

In Caim, Rio, Record, 2006.

Publicado originalmente no "congressoemfoco"

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