Coluna do Mirisola

O mesmo nó

“O mesmo nó que liquidou Modigliani é o nó que trago no peito desde criança, quando eu ainda latia, o nó que também vai me matar e que vai me prender a você até o dia do seu último suspiro inútil e asfixiado, mulher”

Marcelo Mirisola
A mesma selvageria que me levou ao Masp há 30 anos arrastou-me para a exposição de Modigliani aqui no Rio, bem perto do apartamento onde Polito resolveu dar abrigo ao nó que trago de São Paulo. Tenho uma vista privilegiada da Praça Paris, com o nó, e tudo mais, além da brisa que sopra dia e noite para refrescar minhas idéias fora do lugar – estou bem localizado, encostado na Cinelândia.

Ontem, senti o bafio do Museu de Belas Artes cafungando no meu cangote, algo mais real e ameaçador do que a proposta que o travecão da Augusto Severo me fez, que incluía barba,cabelo e bigode – no meu cangote também. Nem sei por onde começar. Digamos que 1980 seja o começo. Eu tinha 14 anos e a selvageria natural de um garoto esquisito que repudiava com todas as forças – antes mesmo de existirem – o roquezinho, e a breguice ombreira daqueles tempos. Vivia na expectativa de conhecer as “sobrinhas” da Tia Olga e oscilava entre o tesão que sentia por senhoras fumantes, e a vida que levava numa … como é que eu poderia dizer?

Numa espécie de clandestinidadezinha muito particular. Naquela época, eu acreditava que meu dom podia ser um refúgio: embora nem desconfiasse da existência desse “dom” ( que hoje prefiro chamar de “inhaca”); mas acreditava sim, apesar de todos os pesares, num lugar especial – um lugar diferente do ramerrame típico de um garoto que nunca esteve nem aí pros Beatles e nem aí pros Rolling Stones. Às vezes, me sentia um retardado. Outras vezes, um animal incapaz de dizer bom dia pro Vanderlei, invocado pequinês da vizinha. Vexame a toda prova.

Não obstante a vergonha paralisante, eu tinha muita satisfação – embora não soubesse – em chafurdar na insignificância; hoje percebo que era dom e mais alguma coisa: tratava-se de um orgulho masoquista de usufruir secretamente dessa condição (mais de usufruir do que sobreviver a ela). Eu latia baixinho, remoía. Era um garoto xucro e iluminado.

Assim que, nos idos dos 80, entramos no Masp: devia ser uma excursão da escola ou algo do tipo. Quando o tal do dom ou a inhaca correspondente me arrastou violentamente para Modigliani. Nesse momento, dançaram para sempre os Degas, os Pissarros, os Picassos e todas as assombrações que disputavam espaço naquele prédio esquisito suspenso em lugar nenhum. Sou a favor da remoção do Masp. Aquilo e as câmaras frigoríficas do IML significavam/significam, aos olhos xucros do garoto e aos meus olhos caídos de hoje, a mesma coisa.

Ah, les artistes! Foi a primeira vez que os encarei frente a frente. Os putos gritavam a partir de um açougue que, no lugar de simplesmente expô-los, glorificava-os; e o pior: disputavam minha atenção. Parecia que eu estava numa feira da Vila Belmiro.

- “Olha as demoiselles! Fresquinhas, fresquinhas d’Avignon!”. D’Avignon que faz divisa com Piracicaba, bem sei. Tinha outro que me puxava pela bainha da camisa, e dava cambalhotas em torno de si mesmo como se fosse uma peça de matambre epilética: “Tá barato, freguês, tá barato! Compra uma dúzia de górgonas caolhas, e leva um par de ninfas bailarinas pra casa!”, e assim por diante. Nem sei quem me irritava mais, os monitores deslumbrados ou “les artistes” – que irrompiam de vaidades resplandecentes para logo em seguida mergulhar em opróbrios e agonias vergonhosas, feito crianças mimadas que comem os ranhos umas das outras e dão chiliques pra chamar atenção dos adultos. Almas carnívoras. Espetáculo deprimente. Que só poderia ser piorado pela certeza de que visitaríamos o Museu do Ipiranga na semana seguinte. Enfim. Quero dizer que esse tipo de eternidade, os museus e seus respectivos despojos, jamais me convenceu. Tenho para mim que são cemitérios. O mundo não precisa de museus, de arte nem de artistas! O mundo carece de shopping centers, açougues e açougueiros.

Com exceção de Modigliani.

Vejam bem: essa era a visão de um garoto xucro e iluminado de 14 anos. De lá para cá evoluí, acho que sim. Hoje, Gauguin e Van Gogh – junto com Amedeo – não me deixam ter nenhuma dúvida com relação ao meu gosto e à passagem do tempo. Evoluí sim. Hoje, ultrapassei a condição de garoto-xucro e iluminado e cheguei a condição de adulto-xucro e de saco cheio – eu sabia que Modigliani me esperava.

Amedeo Modigliani. Entrei na exposição pela diagonal. Uma urgência conhecida, porém boa, selvagem. O garoto xucro e essencial do Masp me guiava – trinta e dois anos depois – pelos corredores do Museu de Belas Artes, aqui no Rio. Caímos direto na sala das fotos. De dentro de uma urna sanitária, Jeanne Hébuterne nos espiava de boca aberta, eu não fazia a mínima idéia de quem era Jeanne. A imagem dela, iluminada pelas sombras, incomodou-me um bocado, e foi o suficiente para que o garoto dos anos oitenta, o xucrinho-essencial, afinal se escafedesse: o puto havia feito a parte dele e foi tarde.

Depois de Jeanne, fiz o percurso inverso de Amedeo. Desfrutei de Lola e Gilberte, quando a linda Maud, lavadeira e piçirico de Picasso, apareceu no ateliê de La Ruche, e me chamou à responsabilidade: não me fiz de rogado e imediatamente a subjuguei de modo que ela e Elvira se pegaram – debaixo do meu saco – gostoso. As maluquetes rastejavam,se lambiam e mordiam minhas panturrilhas. Iam subindo. A ideia era fazer com que ambas ordenhassem meus culhões, uma bola para cada uma; hoje, depois da putaria, não sei dizer se foi Maud ou Elvira quem me sacaneou, mas eu senti a língua de uma das duas, ou das duas, sabe-se lá, a sarrear minha bunda. E pensava: “Essas biscates vão engasgar com os pentelhos grisalhos do meu rabo imundo, que se fodam!”. Ah, as maluquetes da belle époque adoravam uma boa putaria. Não só elas, as madames também. Confesso que me deu um grande cagaço na hora que topei com a autoritária e sedutora Beatrice Hastings. Mesmo assim, paguei pra ver: quer dizer, o mais correto seria dizer que foi Beatrice quem pagou … Anna Achmatova deixei passar batido porque eu sabia que o risco de brochar com uma poeta era muito grande, mas nenhuma, nenhuma se comparava a Jeanne, iluminada pelas sombras.

Modigliani tentou várias vezes, pintou várias versões da mesma Jeanne e não logrou reproduzi-la como ela e ele mereciam. Quando cheguei à exposição, não sabia da história dos dois. Juro! Não sabia!

Depois disso, não consegui ver mais nada. Jeanne me olhava a partir do nó que a desgraçou, o mesmo nó que Modigliani tentou e não conseguiu (digo, conseguiu) espichar – ou desatar – em seus trinta e seis anos de vida. O nó que é emaranhado, nasce e se imiscui dentro da palavra dom. Até encobrir o dom, encobrir o tempo e a palavra e acabar com a vida do infeliz de uma vez por todas.

Eu falei de Van Gogh e de Gauguin. O primeiro foi tomado por uma cegueira de amarelos intensos depois que reproduziu o nó sobre a noite esburacada lá dos cafés de Arles – taí um lugar-comum, mas é fato. Fazer o quê? E Gauguin o remoeu na Polinésia Francesa, e fez lúbricos cipós brotarem do ventre de meninos-travestis, feito hemorróidas. A Propósito. De nada adiantou Gauguin se pirulitar de Paris, ele também foi absorvido pelo gênio onde o vento faz a curva, digo, absorvido pelo nó; Gauguin se fodeu literalmente de verde e vermelho e sob todos os aspectos: da ausência de Van Gogh, de calor e umidade, de loucura, absinto e sífilis. Esse mesmo nó que ainda vai fazer meu pau amolecer dentro de sua boca. O nó que destruiu a vida de Jeanne e Amedeo.

O nó que faz tudo dar errado.

Lembra quando eu vomitei naquele hotel vagabundo, e depois mandei você ir embora? Não foi seu coração que regurgitei no vaso sanitário, vomitei o nó, mas ele não saiu de mim. O nó. O mesmo nó que você vislumbrou no fosso dos meus olhos castanhos e que vem de longe, o nó que a confunde e a faz enxergar poesia onde somente existe egoísmo, solidão e desespero.

Outro dia, fuçando no You Tube, achei Manuel Bandeira. Um filme com imagens caseiras do poeta – anos 40-5O. Ele carregava o dom até quando esquentava leite e olhava pela janela. Pasárgada é o nome que deu ao nó. Em determinado momento, atende o telefone e abre um sorriso acachapante. Devia ser Jayme Ovalle do outro lado da linha. Ah, que sorriso maravilhoso tinha Bandeira, dentões de cavalo. Homem solitário. Imagino que a vida dele tenha sido um inferno … nem o sorriso largo de Bandeira foi o suficiente. Não adiantou nada.

A gente até que disfarça, olha através das janelas, atravessa ruas e amarra os sapatos, escarnece do nó e o esquece durante longos anos, a gente tamborila timidamente um samba no balcão da padaria enquanto nossos amigos envelhecem escandalosamente diante de nossos focinhos e o chapeiro não traz a média com pão com manteiga … A morte. “A morte é uma condição que a gente vive acordado”. Voilá! Dessa vez tive de concordar e tirar o chapéu pro Ricardinho: vivemos a morte acordados.

No dia 24 de janeiro, morre Modigliani no Charité de Paris. No dia seguinte, Jeanne, grávida de oito meses do segundo filho de Modigliani, suicida-se aos 21 anos de idade. Dez anos depois, ela é transferida para o cemitério Père Lachaise, para “descansar” ao lado de Amedeo. A gente desanima diante da esperança alheia, mas continua dando palpites, a gente ama as mulheres, chupa a buceta delas e visita museus e cemitérios desnecessários. Nada faz a mínima diferença. Inútil dar de ombros. “A coisa mais triste” – dizia Bandeira: “é mulher grávida”.

O nó traz para si. O nó faz as mulheres parirem filhos de homens errados. Encerra. Quem tem o nó, sabe. Quanto mais Modigliani o alongava, mais enclausurava-se dentro de si mesmo. Eu vi, meu amor, juro que vi Jeanne no desenho do seu sexo. Nas suas convulsões antes de gozar e nos seus espasmos apaixonados. Chupei gostoso. Abri e fechei o nó, fiz festa, debochei e brinquei de língua-de-sogra como se você fosse meu carnaval, espargi e tratei de engolir tudo de volta, feito uma cânula de sucção. Depois vomitei.  Por isso que a mandei embora. Já não sabia onde terminava o aborto e onde começava o amor,e vice-versa. Só tinha a certeza do nó. Compreende?

O nó é o estilo, o nó é o movimento contrário. O nó leva os amantes ao desespero. Não há reencontro possível, há o nó. Jeanne Hébuterne não tinha um filho na barriga. Pobre Jeanne. Ela se matou porque não aguentava mais o nó. O mesmo nó que liquidou Modigliani é o nó que trago no peito desde criança, quando eu ainda latia, o nó que também vai me matar e que vai me prender a você até o dia do seu último suspiro inútil e asfixiado, mulher.

A exposição “Modigliani, imagens de uma vida” fica em cartaz até 15 de abril. De terça a sexta-feira das 10h às 18h,e sábados, domingos e feriados, das 12h às 17h. Os ingressos custam 8 reais a inteira, e 4 reais a meia-entrada para estudantes e idosos. O Museu Nacional de Belas Artes localiza-se no centro do Rio de Janeiro, vizinho ao Theatro Municipal e à Biblioteca Nacional.


Publicado originalmente no "congressoemfoco"

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