Para ler e refletir...

A faxina da Dilma

Hélio Schwartsman na Folha.com
Já que a faxina da dona Dilma não vai mesmo para a frente, proponho-me hoje a olhar para baixo do tapete e procurar pelas origens evolutivas da corrupção. Como ocorre com nove entre dez problemas crônicos da humanidade, nossas dificuldades decorrem do descompasso entre nossos cérebros, projetados para operar no paleolítico, e o ambiente das sociedades modernas, com ritmos e exigências totalmente diferentes.

Uma boa analogia é com a obesidade. Devido às adversidades enfrentadas por nossos antepassados ao longo da maior parte de sua história, o organismo humano foi selecionado para perseguir compulsivamente alimentos calóricos (em especial doces e gorduras) e para armazenar toda energia sobressalente na forma de tecido adiposo.

As condições de vida mudaram, mas o organismo, não. Nós continuamos programados para adorar "cheesecake" e outras combinações perigosas de ácidos graxos com açúcares, porém num contexto em que adquirimos nossas calorias em supermercados, em vez de caçá-las na floresta. O resultado é a epidemia de obesidade.

A corrupção não é muito diferente. Como mostra o antropólogo Jerome Barkow, no clássico "The Adapted Mind: Evolutionary Psychology and the Generation of Culture", três traços psicológicos humanos básicos, a busca por status social, o nepotismo e a capacidade de formar alianças, estão na origem não apenas da estratificação social como também da política partidária e da corrupção.

Numa descrição sumária e quase caricatural do fenômeno, indivíduos buscam sempre as melhores condições de vida possíveis para si mesmos, seus filhos e parentes próximos. Nas sociedades de caçadores-coletores, era mais ou menos cada um por si. Por mais que os pais quisessem, não podiam garantir que seus rebentos gozariam das mesmas habilidades e, portanto, do mesmo prestígio que eles próprios. Nesse contexto, os grupamentos primitivos eram relativamente igualitários.

Mas foi só introduzir a noção de riqueza para alterar dramaticamente o quadro. Com o advento da agricultura, as sociedades passaram, pelo menos nos anos bons, a gerar excedentes de produção, cujos fluxos podiam ser em princípio controlados e, assim, transmitidos a familiares. É claro que não era muito fácil fazê-lo sem a ajuda de outros, que nem sempre eram parentes (depois que aprendemos a plantar, o tamanho dos assentamentos aumentou bastante).

E aqui eu peço licença para citar Barkow: "Se essa análise é correta, os pais se punham a estabelecer trocas sociais com outras pessoas, na verdade organizando uma conspiração política para garantir que seus filhos e os de seus parceiros também obtivessem de posições de poder".

É claro que o homem é mais do que seus instintos primordiais. Se os seguíssemos incondicionalmente, dificilmente teríamos conseguido formar comunidades com mais de uma dúzia de pessoas. E a cultura é justamente a força que faz com que nos adaptemos a novos ambientes em ritmos compatíveis com a vida humana, sem ter de esperar que uma nova programação genética brote por força de mutações aleatórias em nosso DNA.

Assim, à medida que nos organizamos em sociedades cada vez maiores e mais complexas, fomos também desenvolvendo uma cultura proto-republicana que, por razões óbvias, nos faz classificar como imoral e ilegal casos mais explícitos de nepotismo, desvio de verbas públicas, favorecimentos e outras modalidades de fisiologismo que chamamos genericamente de corrupção --a tal da conspiração das elites de que fala Barkow.

O problema com a cultura é que, embora seja poderosa, ela nem sempre consegue sobrepor-se a nossos pendores mais primitivos, como o atesta a sucessão de escândalos que afeta a administração pública em seus mais variados níveis.

Seria tentador parar por aqui e concluir que a questão poderia ser resolvida se reforçássemos as disposições da cultura proto-republicana com leis e regimes mais severos de fiscalização, se metêssemos os políticos corruptos no xadrez, para falar português claro. Evidentemente, incluo-me entre os que defendem a responsabilização dessa gente, mas receio que as coisas sejam mais complicadas.

O nepotismo, que está na origem desses males modernos, por exemplo, é uma questão muito mal resolvida pela cultura. Nepotismo, afinal, é o nome que biólogos (e promotores) dão a um fenômeno que também pode ser descrito como amor. Abominamos o político que contrata parentes, mas o direito à herança é reconhecido por praticamente todos os sistemas jurídicos do planeta. Discute-se o imposto a ser gravado sobre as sucessões, mas raramente o direito de transmitir bens a filhos.

Entramos aqui no que o psicólogo Steven Pinker chama de paradoxo fundamental da política: o amor (e proteção) que pais dedicam a seus filhos torna impossível que uma sociedade seja, ao mesmo tempo, justa, livre e igualitária.

Se ela é justa, as pessoas que se esforçarem mais acumularão mais bens. Se é livre, elas os transmitirão a seus parentes. Mas, neste caso, a sociedade deixa de ser igualitária e justa, pois alguns herdarão riquezas pelas quais não trabalharam.

Sob essa chave interpretativa, uma ideologia política nada mais é do que a escolha de qual dessas características deve preponderar. Sistemas mais à esquerda enfatizam o igualitarismo, enquanto a direita enaltece a liberdade. Cada um deles define seu próprio "blend" como a materialização da justiça. O paradoxo, porém, nunca chega a ser resolvido.

E Pinker, em "How the Mind Works", aponta outra interessante --e surpreendente-- consequência de nossas inclinações nepotistas: elas transformam a família numa organização subversiva. Aqui, numa tacada só, contrariamos a noção cara à direita de que o Estado e a igreja são os sustentáculos da família e a visão esquerdista de que essa instituição foi concebida para enfraquecer o papel da mulher e a solidariedade de classe e, assim, perpetuar o "statu quo".

Se formos às evidências, o que vamos descobrir é que praticamente todos os movimentos políticos e religiosos da história tentaram atropelar a família. Nazistas e comunistas, por exemplo, cobravam de seus membros uma solidariedade "maior" do que a dedicada a parentes. E o doce Jesus não foi uma exceção, a crer em Mateus 10:34-37: "Não penseis que vim trazer paz à terra; não vim trazer a paz, mas a espada. Porque eu vim pôr em dissensão o homem contra seu pai, a filha contra sua mãe, e a nora contra sua sogra; e assim os inimigos do homem serão os da sua própria casa. Quem ama o pai ou a mãe mais do que a mim não é digno de mim; e quem ama o filho ou a filha mais do que a mim não é digno de mim".

É compreensível. A família, afinal, constitui uma tremenda de uma "concorrência desleal" a qualquer outro tipo de organização, pois parentes têm o impulso inato de zelar uns pelos outros. Mais do que isso, perdoam com facilidade pequenas ofensas que, em outras esferas, dão lugar a disputas intermináveis. Chegam até a contrariar seus interesses mais imediatos para vingar-se de "ofensas cometidas contra o sangue". Dificilmente existe uma maneira mais radical de "vestir a camisa" da empresa.

Foi só depois que algumas dessas organizações constataram que não tinham como competir com a família que tentaram cooptá-las, declarando-se suas defensoras. Há aqui, contudo, uma usurpação e um erro de lógica, pois as famílias antecedem em pelo menos duas centenas de milênios as primeiras instituições religiosas e ideologias políticas. Ou seja, a família (extensa ou monoparental) sempre foi muito bem sem o Estado e sem a religião.

Mas, voltando à corrupção, se não podemos acabar com o nepotismo --ou amor, chame-o como preferir-- e outros pendores que facilitam favorecimentos, é perfeitamente possível discipliná-los, de modo a reduzir o fosso entre nossos impulsos pré-históricos e as necessidades éticas de um Estado moderno. Um dos principais focos de fisiologismo e de corrupção por aqui são as indicações para cargos políticos.

De acordo com um estudo da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico), os postos de livre nomeação no Brasil chegam a 22 mil, só na esfera federal, contra 7 mil nos EUA e apenas 780 na Holanda ou 837 no Chile.

Assim, reduzir de milhares para centenas (ou ainda menos) os cargos de livre provimento do presidente já representaria uma pequena revolução administrativa (em princípio, o funcionário concursado é mais competente que o apadrinhado) e política (partidos e governo teriam de encontrar outra forma de negociar maiorias parlamentares). Certamente não basta para acabar com o nepotismo e a corrupção, mas seria um bonito experimento sociológico, com o qual a sociedade não tem nada a perder, muito pelo contrário. Se a dona Dilma quer mesmo fazer uma faxina, este seria um bom lugar para começar.

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