Coluna do Mirisola

O Rap do Medalhão – 130 anos depois

“Há coisa de uns sete anos, arrumei uma encrenca dos diabos com os manos do rap – numa época em que Bill, o Mensageiro da Verdade morava na Cidade de Deus”

Marcelo Mirisola
A especulação – no meu caso – é mais arte do que maldade propriamente dita. Porque escolhi assim, mas penso que a viajada na maionese não deve ser regra. Tenho apreço pelos números e as estatísticas – sobretudo quando existe a chance de promiscuidade entre a matemática e a fantasia.

Às vezes, atravessar a rua de olhos fechados se impõe como ficção, e é claro e evidente que, nessas horas, não me lanço a partir de uma calçada incerta e não sabida. Olho para os dois lados, e só depois de constatar que o caminhão de mudanças passou – só depois -, atravesso a rua. Geralmente meu ponto de partida é uma implicância, uma negativa, uma pedra no sapato ou um raio de luz vindo do céu – que pode ser o inferno, dependendo do ponto de vista.

Ainda não fui atropelado pela metafísica, e meu índice de acerto é altíssimo.

Pois bem, há coisa de uns sete anos, quando escrevia no falecido site da AOl , arrumei uma encrenca dos diabos com os manos do rap – numa época em que Bill, o Mensageiro da Verdade (MV, mensageiro da verdade)* morava na Cidade de Deus, e não cogitava ser discriminado e – pasmem – desclassificado na Dança dos Famosos lá do Faustão.

Nunca me enganou. Nem ele, nem mano Brown.

Um dia ligaram pra minha casa, e me aconselharam a ficar quietinho, caso contrário, se eu insistisse em “desmoralizar o movimento” correria um sério risco de amanhecer … “com a boca cheia de formiga”… É: foi isso mesmo o que me disseram: “Boca cheia de formiga, tá ligado?”

A coisa ficou feia pro meu lado. Se a ameaça não fosse tão tosca, e se a fraude e esse lixo todo não fosse tão desprezível, bem, mesmo assim, eu não perderia a piada. Seria a mesma coisa que pedir um rap sem rima pro mano Brown. Complicado, né? Daí que, na época, depois da ameaça, “tá ligado?”, escrevi uma crônica que dizia mais ou menos o seguinte: “Não basta ser assaltado por esses caras? Ainda tenho que engolir essa xaropice e chamar de música?”

Só na cabeça dos executivos da Nike e das professoras da PUC que aquilo ali podia ser uma revolução. Depois de oito anos, estão todos domesticados, devidamente engajados nas causas sociais e nos projetos do Itaú Cultural – basta acompanhar a agenda do feroz mano Ferréz para constatar que minha especulação de outrora virou estatística. E virou dinheiro, muito dinheiro no bolso da malandragem. Os revolucionários do Jd. Ângela e da Cidade de Deus, como eu havia previsto naqueles tempos, transformaram-se em prósperos comerciantes, garotos propaganda, dançarinos de axé, vendedores de livros, camisetas e bonés.

Ah, penso, as coisas seriam diferentes se, naquela época, eu tivesse lido a “Teoria do Medalhão”… ou não? Acho que não. Sou teimoso e turrão. Embora o bruxo do Cosme Velho tenha diagnosticado e projetado a alma flácida e arriada do brasileiro para o além, e apesar de tudo, continuo acreditando que minh’alma é portenha, gosto da peleja. Há 130 anos, Machadão vaticinava: “Não deves empregar ironia, esse movimento ao canto da boca, cheio de mistérios, inventado por algum grego da decadência, contraído por Luciano**, transmitido a Swift e Voltaire, feição própria dos céticos e abusados. Não.”

Não! Nem fudendo! Jamais! Use a chalaça, aconselhava Machadão, nossa boa chalaça amiga, “gorducha, redonda, franca, sem biocos, nem véus, que se mete pela cara dos outros, usa a chalaça”.

Traduzido para 2011, seria algo parecido com: incense, alise, jogue sua filha de doze anos na roda e deixe a rima pobre se meter no meio do samba e do rock and roll, tudo pela chalaça, use os grunhidos e desfile os moletons da Nike, acompanhe as rimas e corrija esse maldito sotaque italiano que você herdou do Adoniran Barbosa, branco, porco, reacionário, playboy, se liga!: “Uma vez entrado na carreira, deve pôr todo o cuidado nas idéias que houveres de nutrir para uso alheio e próprio”. O melhor – aconselhava o Pai ao filho candidato a medalhão – “o melhor será não as ter absolutamente”.

Sob hipótese alguma. Nada de idéias, zero. Nem ouvidos, acrescento eu; portanto, vai passando o celular e não reaja porque isso aqui é um assalto e uma dádiva para ambas as partes: se pretende ser um  medalhão, meu filho, entenda que nossos irmãozinhos das quebradas são Mensageiros da Verdade sempiternos, ungidos e benfeitores, jamais reaja, não ouça, não veja, não pense. Apenas levante as mãos. Mãos ao alto! Peça bis, aplauda de pé (ou de quatro…), quanto piores as rimas, tanto melhor para sua segurança.

Pois bem, todo esse preâmbulo para dizer que ontem, quando eu saía da Estação Brigadeiro do metrô, minhas profecias e especulações se cumpriram matematicamente: fui abordado por dois artistas, um fazia rimas enquanto o outro me assaltava e improvisava o sample a partir de minhas costelas “Perdeu, playboy/ branco safado/ a vida é correria, passa-o-ouro-cala-boca/ é nóis na fita noite e dia/ tum tum tum” ou algo assim…

Ainda bem que eles tiveram o mínimo de coordenação motora. Se em algum momento a dupla se desentendesse na batida e, sei lá, trocasse a rima pelo breque (ou vice-versa) eu não estaria aqui a reproduzir essa obra de arte da música contemporânea, também conhecida – em tempos idos –  como assalto a mão armada. O problema não foi nem perder o celular e os 80 reais que eu havia acabado de sacar no caixa eletrônico (emprestado do Waltinho, outro artista, a juros de 14% ao mês), nem o susto que é tão comum nessas ocasiões.

A questão era: como é que eu registraria a ocorrência?

- Doutor, fui assaltado. Sei que podia ser bem pior, podia ser uma dupla sertaneja. Mas é o seguinte: perdi o celular, também me levaram 80 reais e ainda tive que ouvir uma porra de rap umas cinco vezes. No começo, não entendi o que se passava. Depois que o mano com o gorro da Nike (ou teria sido aquele que usava a camiseta do Corinthians?) me encostou a arma nas costelas é que percebi o assalto. Eles me obrigaram a ouvir aquele lixo do começo até o final.

- Sei – diria o doutor – provavelmente imaginando em qual artigo iria me enquadrar.

A vida é correria/ é nóis na fita noite e dia.

Como é que eu ia fazer um B.O desse jeito? O rap dos manos já me acusava de ser branco e safado. Vai que, numa dessas, devido ao nervosismo, eu deixasse escapar que ouço Piazolla todo final de tarde e que também sou palmeirense desde criancinha… E se eu dissesse que queria ter nascido em Buenos Aires, que Borges vale por uma semana ou um século inteiro da nossa arte moderna, e que eu não troco todo o Machadão por dois tangos de Angel Luna (ou talvez três). No mínimo, eu seria acusado de crime hediondo e inafiançável, cometido por motivo torpe e fútil: idéias, o melhor será não as ter absolutamente, ibidem Machadão. Infortúnio.

O pior de tudo é que esse mardito rap não desgruda de mim…  A vida é correria/ nóis na fita noite e dia…

*MV = Mensageiro da Verdade
MM (que sou eu mesmo) = Mensageiro da Mentira

** Machadão falava de Luciano de Samósata, autor de “Diálogos dos Mortos”, leiam urgentemente!

Sobre o autor

Marcelo Mirisola
Considerado uma das grandes revelações da literatura brasileira dos anos 1990, formou-se em Direito, mas jamais exerceu a profissão. É conhecido pelo estilo inovador e pela ousadia, e em muitos casos virulência, com que se insurge contra o status quo e as panelinhas do mundo literário. É autor de Proibidão (Editora Demônio Negro), O herói devolvido, Bangalô e O azul do filho morto (os três pela Editora 34) e Joana a contragosto (Record), entre outros.

Outros textos do colunista Marcelo Mirisola.

Publicado originalmente no "Congresso em Foco".

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