Coluna do Mirisola

O cão da meia-noite

"Ser gay hoje em dia é a mesma coisa que servir ao exército em outros tempos: quase que uma obrigação moral e cívica"

Marcelo Mirisola*
Quase nove da noite, eu estava lá no Estadão comendo um sanduíche de pernil e tentando lembrar o título de um conto do Marcos Rey. Era a história de um detetive que seguia um cachorro boêmio, a sanha do cara era eliminar o vira-latas, algo assim.

Se não me engano, o detetive (talvez não fosse um detetive...)  atendia no edifício São Vito, extinto treme-treme localizado na Baixada do Glicério, perto do Mercadão. Pois bem, eu estava em paz e respirava a fumaça noturna de São Paulo, eu & meu sanduíche de pernil, quase feliz da vida e outra vez intrigado com a gíria local dos manos. É curioso como eles trasladaram (e assassinaram) o erre de ponta de língua - típico paulistano macarrônico dos anos 50 - prum lugar que é a mistura de uma Pirituba ressentida com ônibus lotado, como se fosse o esmegma de um sotaque, como se urubus falassem a língua do bota-fora. Tá certo que aquele erre estalado era ridículo, mesmo assim, não me acostumo, e me sinto excluído, menos paulistano por causa disso.

Aí, aparece um casal que não era bem um casal, eu e o chapeiro olhamos pra eles. Uma bicha velha que usava um cabelo verde estilo Pica-Pau e ao lado dele(a) uma das mulheres mais gostosas que apareceram  no Estadão no último milênio. A bicha se irritou, e logo apontou o dedo.

– Tá olhando o quê?

O chapeiro fingiu que não era com ele. Eu, que não queria confusão, pensei: “Ora, tô olhando a bunda da gostosa que você não vai comer” ... mas respondi algo mais ou menos parecido com: “sua namorada é linda”. A bichona, provavelmente censurando meus pensamentos, resmungou:

- Isso é preconceito.

Acionei meu amigo,MM, e falei comigo mesmo: “Ué, elogiar é preconceito? Olhar a bunda de uma mulher gostosa é preconceito? Se fosse a bunda dessa bicha velha, tudo bem?”.

Depois de fazer essas conjecturas, e de ignorar solenemente o piti da bichona -  que  ameaçou me denunciar(?!) e que usava coturnos pink e que também carregava dois peitões de airbegue - terminei o sanduba de pernil, paguei a conta e fui encontrar meu amigo Paulinho de Tharso num boteco da Martins Fontes, ali do lado.

São Paulo me dava boas-vindas.  A recepção, porém, me deixou de saco cheio. Ser gay hoje em dia é a mesma coisa que servir ao exército em outros tempos: quase que uma obrigação moral e cívica. Em 1985, último ano da ditadura, fui desligado do exército por incompetência física e insubordinação. Passei uma semana preso, humilhado e incomunicável. Só não peço uma indenização porque orgulho não é moeda de troca. Não tenho vocação para respeitar autoridades, hierarquias, códigos e regimentos, não estou nem aí com pitis e chiliques, podem vir de um general do exército, de um mano das quebradas ou de uma Drag-Queen. E é claro que, pelos estatutos de qualquer um deles,sempre estarei errado e sujeito às penalidades de suas leis. Imagino que um sanduíche de pernil ou uma ruga maligna e canastrona que se levante da minha testa é o suficiente para me acusarem de racista, homofóbico e terrorista.

No problem
. Tô na boa, porque não sou nada disso (apenas um pouco terrorista),  mas sou culpado sim – e essa culpa me dá tesão. Meu crime foi ter nascido na época errada. Talvez seja molecagem. Mas, pensando bem, em qualquer época e circunstância, eu não resistiria à subversão. Fazer o quê?  Ora,eu olho pra bunda das gostosas. Tudo começou quando me expulsaram do colégio adventista, eu tinha apenas 12 anos de idade e era um garoto bonitinho; fui expulso e convidado a me retirar de tantos lugares, terreiro de macumba, masmorra sadomasoquista, Parque da Mônica, Florianópolis, persona non grata na Flip e nos editais da Petrobrás, fui corrido até do bar dos Parlapatões porque pedi um chorinho no Jack para as mocinhas delicadas que tomaram posse do estabelecimento. A lista é imensa.

O único jeito de solucionar o caso era matar o vira-latas, acho que sim. Só não entendo a associação que Marcos Rey ajambrou entre a ronda do cachorro pelas boates da boca do lixo e o próximo crime. Talvez o detetive fosse um obcecado, um místico a serviço da Cargill, sei lá. Nem sei se o cara era detetive. De qualquer modo, sou a favor de matar cães, sobretudo aqueles que latem – e principalmente os chiuhauhas. Associação é um treco que cada um faz do jeito que achar melhor, e geralmente funciona se o sujeito tiver talento para se levar a sério e, consequentemente, iludir-se a si mesmo. Daí para iludir os outros é moleza. Freud era mestre: O Futuro de uma ilusão é um chute atrás do outro. Prefiro mil vezes Marcos Rey. Quem souber mais detalhes da história do detetive(?) que encomendou a morte do vira-latas pros porteiros da romântica “boca” de idos tempos , por favor, entre em contato.

Chegando no buteco da Martins Fontes, recebo a notícia de que um traveco caiu do Redondo, mais um. Normal. Vai ter churrasco elétrico George Foreman na casa da Fernandinha no próximo sábado. Aqui em Sampa não sabemos assar uma carne, mas nossas minas, branquelas e comedoras de pizza, têm os melhores pneuzinhos abdominais do planeta. Meu amigo de fé e irmão camarada, Paulinho de Tharso, que – vejam só a coincidência - estudou no mesmo colégio adventista e que também foi convidado a se retirar de lá nos anos setenta, me esperava do outro lado do balcão. Acabava de ser expulso do Marajá. “Cazzo, Paulinho! O Marajá é nosso QG! Que houve?”  “Uma tentativa de cantar a garota da mesa ao lado.” “Só isso, Paulinho?” “Não, eu citei Lorde Byron”. Essas coisas que me faziam falta no Rio, ah, São Paulo! O que mais?  Reagi a um assalto e fui bem sucedido – botar o vagabundo pra correr foi umas das melhores sensações da minha vida. Mas não tentem fazer isso em casa nem na rua.

São Paulo cospe seus entes queridos, a gente vai embora, pragueja a cidade, amaldiçoa o trânsito, e respira sua poluição, mas sempre acaba voltando, assim mesmo, no gerúndio. Arnesto mora no Brás. A Roosevelt, todavia, não é mais a mesma. Com a mudança do Sebo do Bactéria para o mundo virtual, aquilo perdeu toda e completamente a graça. O lugar deu uma atucanada braba: corre que o PSDB meteu o bico por lá, rolou muito dinheiro, revitalização ad perpetaum rei memoriam (leia-se: um factóide que não acaba nunca mais); no lugar do improviso, o casual premeditado: confete e arte pra todo mundo, consta que, agora, vender a alma é sinônimo de qualidade de vida, postura mesmo, que emana credibilidade e crédito. A ordem, a hierarquia e a disciplina dos milicos foi substituída pela “dignidade” dos gays, mudaram apenas a acusação e o dedo em riste, quem era “comunista” virou  “preconceituoso”. Se no futuro chifres forem trocados por asas, eu quero ser um lambari. Marião garante que rock and roll é coisa de velho decrépito,concordo.

Uma vez escrevi que não conseguia atravessar uma rua sem meus preconceitos, contudo os motivos eram outros –  não lembro quais, mas asseguro que não tinham a mínima importância. Taí a chave da coisa, quem quiser entender,ótimo.

A vida segue no centrão de São Paulo, na mesma toada. E eu também continuo o mesmo, a diferença é que envelheci vinte anos em cinco (conforme atesta a foto acima) e, além de estar velho e acabado, poderia acrescentar que a guerra perdida começa agora mesmo, cheguei tranqueirada, estou de volta.

Tenho quase certeza de que Marcos Rey meteu um camelô corcunda nesse imbróglio só de sacanagem, e esse sujeito esquivo espreitava o cão da meia-noite, cão, maldito cão, cujo nome era Augusto. 

* Considerado uma das grandes revelações da literatura brasileira dos anos 1990, formou-se em Direito, mas jamais exerceu a profissão. É conhecido pelo estilo inovador e pela ousadia, e em muitos casos virulência, com que se insurge contra o status quo e as panelinhas do mundo literário. É autor de Proibidão (Editora Demônio Negro), O herói devolvido, Bangalô e O azul do filho morto (os três pela Editora 34) e Joana a contragosto (Record), entre outros.

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