Opinião

Razões para perplexidade

O Estado de S.Paulo - Editorial
"Como justificar que, num delito cometido em 2000, até hoje não cumpre pena o acusado?" Pois é. Se nem a ministra Ellen Gracie, que já presidiu a Suprema Corte, tem resposta para essa pergunta, quem a terá?

Na última terça-feira a 2.ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que estavam esgotadas todas as possibilidades de recursos e, finalmente, o jornalista Antonio Pimenta Neves deveria ser recolhido à prisão para cumprir a pena de 15 anos a que está condenado pelo frio assassínio da também jornalista Sandra Gomide, sua ex-namorada, em agosto de 2000. Réu confesso, Pimenta Neves passou sete meses detido, de setembro de 2000 a março do ano seguinte. Depois disso, serenada na mídia a repercussão do bárbaro crime, seus advogados de defesa conseguiram, por meio de seguidas ações protelatórias, mantê-lo em liberdade. Quase 11 anos depois do assassínio foi que a Justiça, pelas palavras do ministro Celso de Mello, relator do processo no STF, decidiu que "é chegado o momento de cumprir a pena".

Todos os brasileiros compartilham da perplexidade da ministra Ellen Gracie. O episódio é "emblemático", na expressão do ministro Gilmar Mendes, ex-presidente do STF. Mas emblemático do quê? Apesar da evidência incontestável de que o STF tem adotado decisões históricas na salvaguarda dos princípios constitucionais, o episódio Pimenta Neves é emblemático da forma como funciona mal, muito mal, no seu conjunto, um sistema judiciário que, por definição, deveria distribuir justiça para os brasileiros. Mas o pior é que não são privilégio do Poder Judiciário as mazelas que comprometem o padrão de civilização da nação brasileira. Tanto o Legislativo quanto o Executivo - e especialmente este último, pela soma crescente de poder discricionário que acumula - têm sido pródigos em contribuições de toda ordem para manter o Brasil atrelado à mentalidade do atraso, à pedagogia da ignorância, ao predomínio dos privilégios, enfim, ao circo de horrores a que se assiste diariamente em assuntos da maior gravidade como as denúncias contra o ministro da Casa Civil, Antonio Palocci, a (des)organização da Copa do Mundo de 2014 e da Olimpíada de 2016, as brigas de foice no seio tanto das forças políticas governistas quanto das oposicionistas por questões eleitorais e de partilha de cargos, etc., etc. O mais grave, no entanto, parece ser a crescente indiferença, o progressivo aumento da incapacidade de indignação da sociedade, de modo geral, e da juventude, em particular, diante de tantos desmandos - entre eles a longa impunidade de fato de um criminoso confesso como Pimenta Neves. O anestesiamento da consciência cívica do brasileiro é preocupante.

Sob o manto protetor da indiferença geral, haverá sempre quem seja capaz de justificar, à luz das leis vigentes, a procrastinação que permitiu manter o assassino de Ibiúna livre da prisão por uma década. E com a perspectiva de não ficar na prisão mais do que 23 meses, graças aos benefícios do instituto da progressão de pena. É o culto da impunidade - o mesmo que, num outro plano, tem mobilizado todas as autoridades gradas da República para demonstrar que as denúncias contra o primeiro-ministro ad hoc são meras armações oposicionistas que não merecem resposta. Mais um exemplo de como dois assuntos que aparentemente não têm nada a ver um com o outro são, na verdade, gerados na mesma matriz.

Esses assuntos disputam destaque no noticiário com outro acontecimento, de repercussão internacional, que, por coincidência, envolve tanto a questão da igualdade de direitos perante a lei e de tratamento das pessoas quanto a controvertida necessidade de "preservação" de altas autoridades: a prisão de Dominique Strauss-Kahn, o todo-poderoso diretor-geral do FMI, por acusação de estupro. O prisioneiro não teve nenhuma chance de dar uma "carteirada" que amenizasse seu contratempo nem dispôs de intermináveis recursos judiciais que o mantivessem longe das grades. É de nos deixar perplexos.

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