Cultura

Viciados na bondade de estranhos

Ou, mais precisamente, na caridade do contribuinte: os artistas consagrados que pedem dinheiro público estão dentro da lei, mas fora dos limites da ética

Sérgio Martins, VEJA (original aqui)
Maria Bethânia e Gal Costa são duas das maiores intérpretes brasileiras. Nando Reis, ex-integrante do grupo de rock Titãs, teve suas composições-solo gravadas por cantoras como Marisa Monte e Cássia Eller.

O grupo Tchakabum não tem esse tipo de prestígio (Kleber Bambam, vencedor do primeiro Big Brother, era louco por suas canções), mas vende disco e lota shows.

Nas últimas semanas, entretanto, esses artistas estiveram em evidência não por suas eventuais qualidades, e sim pela indignação que provocaram quando veio a público que estão entre os vários contemplados pelo Ministério da Cultura com autorização para captar verbas acima de 1 milhão de reais por meio de benefícios fiscais previstos na lei Rouanet.

Do ponto de vista legal, nada impede que artistas consagrados busquem esses recursos, nem que o MinC aprove seus projetos: todos os processos citados correram dentro do escopo da lei.

A questão é outra – se é ético que os artistas peçam o que na prática não passa de subsídio estatal para sua carreira, e legitimo que o MinC acolha proposta como a que beneficia Maria Bethânia, para um blog em que cada dia será postado um novo vídeo com ela declamando poesia.

Até prova em contrário, a única coisa que o público de Bethânia espera dela é que cante. E esse público, aliás, é apenas uma fração de um conjunto bem maior, o dos contribuintes que financiarão compulsória e involuntariamente – muitos dos quais não têm interesse em ouvi-la cantar, muito menos declamar.

Isso é, como bem definiu o músico Zé Rodrix, “usar o dinheiro de muitos para financiar a aventura pessoal de poucos”.

A lei Rouanet foi criada em dezembro de 1991 para estimular as empresas do país a investir na área cultural e retirar parte desse ônus do Estado. Como contra partida, ela permite abater até 4% do imposto devido. Ou seja, o dinheiro não sai dos cofres do Ministério da Cultura – mas é, sim, dinheiro público, que poderia ser aplicado tanto em projetos culturais merecedores como em saúde, educação ou qualquer outro setor.

Os nomes mais conhecidos costumam sair ganhando com a lei Rouanet porque, além do desconto no fisco, a vantagem para as empresas está em associar sua marca a um artista que lhes dê projeção.

Muito mais dificuldade encontram os projetos de música erudita e de artistas iniciantes ou experimentais. De instrumento para movimentar a cultura, então, a lei Rouanet muitas vezes é brandida como ferramenta para o assistencialismo de privilegiados.

Poderia ser pior: certas correntes usam essa distorção na aplicação da lei como argumento para pregar sua reformulação – segundo a qual o MinC seria empossado como distribuidor de verbas, o que transformaria a pasta naquele vergonhoso balcão de negócios que era, por exemplo, a extinta Embrafilme.

VEJA teve acesso aos requerimentos dos quatro artistas citados, bem como aos de Erasmo Carlos, Zizi Possi e da filha de Elis Regina. São de causar espanto os valores pedidos por alguns deles.

Maria Bethânia, por exemplo, achou que merecia 600.000 reais para ser diretora artística de seu próprio projeto, e pretendia remunerar o moderador do blog com rendimentos finais de 120.00 reais.

Gal Costa, que vai realizar 25 ensaios e oito shows para um tributo ao compositor Tom Jobim (já revisitado por ela em um passado não tão distante), classificou popular ingressos no valor de 50 a 100 reais.

Já o Tchakabum, em sua cruzada para divulgar o gênero neopagode, vai gastar 162.000 reais em cada um de seus dez shows gratuitos nas praias do Rio.

Se não barraram essa festa toda, os avaliadores do MinC ao menos corrigiram alguns valores. Os 600 000 reais de Maria Bethânia viraram 302 500 e os 120 000 do moderador do blog, 72 000. Os ingressos de Gal Costa baixaram para a faixa de 30 a 60 reais – que continua nada tendo de popular.

Em países como os Estados Unidos, é comum que artistas retribuam um pouco do carinho recebido nos primeiros anos de carreira. O ator Brad Pitt e o saxofonista Branford Marsalis ajudam na construção de casas para os desabrigados de Nova Orleans.

O ator Jack Black, famoso por suas comédias escatológicas, contribui financeiramente com a Filarmônica de Los Angeles. Tony Bennett, talvez o último grande cantor de jazz, criou programas musicais em sete escolas de Nova York e fundou a Escola de Artes Frank Sinatra na mesma cidade.

Patti LuPone, artista que reina nos palcos da Broadway mas está longe de ser milionário, é uma das principais colaboradoras da Juilliard School, emérita formadora de músicos e atores do primeiro time.

O artista brasileiro, por sua vez, sempre dependeu da bondade de estranhos. Foi mimado nos tempos gordos da indústria fonográfica, ganhou fama e dinheiro com shows e ocasionais vendas de discos. E hoje, quando as transformações no mercado não o favorecem, acha que o Estado lhe deve o favor de bancar seus sonhos.

Mesmo que a cortesia seja feita com chapéu alheio – o de seu público. Em meio a essa guerra de vaidades e vontades, o Tckakabum até faz menos feio: seus shows pelo menos serão gratuitos. O prejuízo do contribuinte, no caso, se concentrará mais no aparelho auditivo que no bolso.

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