Ramalhete de "Causos"

De tudo aquilo só restou barro e memória

José Ronaldo dos Santos
Eu conheci um contador de causos conhecido por Catarino. Isto foi no início de 1980, num rancho de pescadores que era onde hoje está a pista de skate, em frente ao aeroporto. Naquele tempo, conhecendo bem pouco da história de Ubatuba, me impressionou muito o talento daquele homem. Marcante também foram outros caiçaras que naquele espaço conheci (João de Sousa, Dito Mesquita, Clemente Malaquias...). Depois da morte dele, fiquei sabendo que o Catarino não era ubatubano; nem o seu nome era este. Assim o tratavam porque era catarinense. Por estas paragens ficou por motivo ligado à pesca (e por ter se apaixonado por uma caiçara muito bonita!). O que eu resumo a seguir foi a primeira – e inesquecível! - história que dele eu ouvi em relação aos antigos moradores desta terra: os tupinambás. Hoje, 14 de setembro, dia da comemoração da “Paz de Yperoig”, que deveria ter o nome de Traição de Yperoig, deixo que Catarino fale a todos:

- Uma de suas aldeias era a de Yperoig que se localizava próxima do rio Ubatuba; seu cemitério estava no morro da barra da Lagoa. Koakira, no tempo do padre Anchieta, era o cacique, o líder político; o líder religioso era o pajé Ygatu. Desta época vêm as brigas com os portugueses. A vida na aldeia, apesar do ambiente de suspense, transcorria na rotina; somente os guerreiros estavam de prontidão.

Abro um espaço para esclarecimento: não é demais relembrar que guerrear fazia parte da cultura dos povos indígenas, assim como futebol e novela não podem faltar nos dias atuais à maior parte dos brasileiros. O primeiro livro a descrever os costumes dos índios do território em questão, de autoria de Hans Staden, diz que tupinambás e tupinikins se digladiavam pelo menos em duas ocasiões: na época da tainha e quando o milho amadurecia. Se a guerra era inevitável, viver era necessário.

Neste momento João de Sousa levanta a mão: - Me dão um aparte? Os antigos diziam que, além de arco e flechas, os índios levavam também bodoques.

Todos riem. Somente Catarino diz muito sério: - É verdade, mesmo parecendo brincadeira do filho do velho Rita! Os guerreiros tinham as suas armas de emergência. Afinal, não se podia perder a luta por falta de armas. Até mirim-seco-com-pimenta eles tinham numa espécie de embornal. Servia para jogar nos olhos dos outros, quando os inimigos estivessem bem próximos.

João, contente pela confirmação, completou: - Saibam ainda que daqui, do canto do Itaguá, que saía todo o mirim que misturavam com pimenta. Não chegaram a conhecer o “buraco do Vírgílio”? Hoje, depois do aterro, está debaixo de um restaurante. Era daquela época! A guerra com os portugueses e com os outros índios exigiu muita areia. Também tinha nas Galhetas, na Cocanha, porém no Itaguá tinha mais e era melhor. E tem mais: diziam os antigos que até os chineses, antes de Cabral, catavam areia do meu bairro para produzirem pólvora. Disso eu me orgulho!

Essa ninguém aguentou. Só o João para criar isso de chinês no Itaguá há mais de quinhentos anos! O complemento é do Mesquita: - Depois disso que o compadre falou sobre chinês no Itaguá, tenho que usar o dizer do norte, do ex-escravo da Itamambuca qe dizia: “A providência divina é capaz de muita coisa”. Uma coisa é certa: eu conheci a lagoa que existia entre a casa do velho Virgílio e o lagamar, depois da linha dos jambuís. Era um lugar de pescaria do bairro, porque havia de tudo, desde linguado até robalo e caranha. Só que o nome “buraco do Virgílio” é novo, disso eu não sabia. Olha que eu tenho a idade do compadre e fomos criados juntos, perto de onde hoje é o campo de futebo!

Do parágrafo seguinte vem a relação do título deste com a argila, com um dos traços culturais tupinambás. Ainda, de acordo com o nosso contador:

- Um grupo de índios era responsável por buscar, próximo do mangue entre o cemitério e a lagoa, a matéria básica para a confecção de tantos utensílios, desde os pequenos pitos para fumar até as grandes urnas funerárias. Junto ao grupo, também escolhendo a argila, sempre se encontrava o pajé. Também as crianças ajudavam. Eles cantavam sempre.

Outro espaço; só para esclarecer: é sabido que, nos povos primitivos, o canto é como que um fiel companheiro em muitos momentos, nas muitas atividades. Eles marcam a cadência, dão ânimo, mantêm uma espiritualidade, etc. Entre os indígenas de Yperoig também era assim.

Voltando ao grupo da argila, fala Catarino!

- Lembro-me do refrão cantado pelo grupo, era assim: a língua que matou o povo Tupinambá. Este canto saía como um murmúrio, se repetindo...se repetindo...se repetindo...causando no pajé um desconforto, como se invocasse uma tragédia. Talvez por isso que o líder parecia querer mudar tal frase. Porém, os demais do grupo desconsideravam a manifestação do mesmo e voltavam ao canto com a mesma animação. Penso que isso poderia ser parte de um ritual, ou seja, ele tinha de cumprir um papel e os demais deveriam proceder como eu contei.

Hoje, assim eu concluo: também é de se supor que tal canto viesse de tempos imemoriais, passando por gerações tupinambás. Traria algo de profético? Conjecturei isto após ter estudado sobre a derrota da Confederação dos Tamoios, em 1563: a mentira que continua sendo a Paz de Yperoig.

Sugestão de leitura: Esta terra tinha dono, de Benedito Prezia.

Boa leitura!

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