Coluna da Segunda-feira

Na fila

Rui Grilo
Depois de algum tempo, consegui chegar até a funcionária que olhava as receitas e distribuía as senhas.


- É preciso duas cópias da receita.

- E o médico não sabe disso ?

- Não sei. Mas preciso de duas vias. Sem isso, neca. Não posso atender.

Voltei ao guichê do ambulatório e relatei ao atendente do guichê. O médico não estava mais.

- O que eu faço ? O remédio acabou e não moro aqui. Moro em Ubatuba.

- O jeito é ir na Cardiologia, no outro prédio.

Desci até o térreo e atravessei o extenso corredor que une o ambulatório ao Hospital do Servidor Público. Procurei o chefe da cardiologia e expliquei o meu caso. Pedi a ele que dobrasse a receita mas ele negou. Uso 20 mg mas quase nunca tem e a farmácia não dá o de 10 mg. Então, nem sempre a gente consegue esse remédio que é o mais caro. Sempre tem os mais baratos. Mas dei graças a Deus por ele me dar outra receita.

Voltei à fila e peguei as senhas. Uma é para os remédios de uso contínuo mais baratos. A outra é para os remédios mais caros, cuja receita é acompanhada de uma guia para retirá-los durante três meses. Mas dificilmente conseguimos porque só pode pegar a quota de cada mês e às vezes não têm e as passagens para São Paulo ficam quase no valor dos remédios.

Sentei e aguardava a minha vez. Havia mais de cem na minha frente. Ouvi uma voz masculina que perguntava:

- O que é isso?

Alguém explicou:

- É a fila para pegar a senha.

- Nossa! Nada mudou. É a mesma cara feia de sempre. Olha lá a cara daquela no guichê. Para tá com aquela cara só pode ser mal amada.


Meus olhos se encheram de lágrimas de tanto rir. Serviu também para diminuir a tensão de ficar esperando. No entanto, logo depois ouviu-se os gritos de uma discussão e uma mulher passou em frente do guichês xingando.


Comecei a conversar com uma mulher que estava do meu lado. Ela era da Mooca mas ia pegar o remédio para o marido porque nunca havia no posto de saúde. Ela me contou que ele tinha distúrbio bipolar e quando ficava sem remédio tinha que ser internado. Parava de comer e ia emagrecendo. Chegou a pesar menos de 40 quilos.

- Como é que eu vou fazer? O remédio custa mais de mil reais e com o salário de aposentado não dá. Se aqui não tiver, ele fica sem.

Logo depois chegou a vez dela e vi os dois saindo com o remédio nas mãos.

Quando chegou a minha vez, entreguei as duas vias da receita. A moça me disse que bastava apenas uma via. Apenas a guia de controle tinha que ser em duas vias. Então, contei a ela tudo que havia acontecido e pedi para ela dar essa informação à funcionária que distribuía as senhas.

Fiquei pensando no quanto o mundo mudou. Lembro que minha mãe contava o quanto ela sofria quando não tinha dinheiro para pagar a consulta ou comprar os remédios. Uma vez foi chorando à farmácia pedir para o dono vender fiado para salvar o meu irmão que estava com pneumonia.

Não adiantava nada ir ao médico se não tinha dinheiro para comprar. Muitas vezes, só se conseguia dinheiro para consulta e para os remédios recorrendo-se ao auxílio dos vizinhos, passando o pires de casa em casa. A garantia do fornecimento dos remédios é uma das ações que influenciaram no aumento da longevidade e na queda da mortalidade infantil.

Também me lembro do curto espaço de tempo entre o resultado do meu cateterismo e a operação de ponte de safena. Fiz o exame na sexta e na terça seguinte fui operado. Sem gastar nenhum tostão extra e assistido por uma equipe de ponta do Beneficência Portuguesa.

Apesar das filas e da dificuldade de atender a todos adequadamente, da necessidade de aperfeiçoamento e de combate aos desvios de verbas e de remédios, não há como não reconhecer a importância da implantação do SUS – Sistema Único de Saúde. A partir disso, o tratamento de saúde é visto como um direito e não uma benemerência, um favor.

Dizer que nada mudou é uma atitude que pode matar a tomada de atitude e a luta por direitos. A gente que participou durante muito tempo no Movimento de Saúde sabe o quanto foi duro para conquistar esse atendimento e a obrigatoriedade da constituição dos Conselhos de Saúde. Por outro lado, há uma visível tentativa de aparelhamento dentro dos conselhos de maneira a impedir que seus membros exerçam o seu papel de elaboração e de fiscalização das políticas públicas.
Rui Grilo

ragrilo@terra.com.br

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