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Os novos bad-guys

“Uma eventual aliança PT/Kassab nos remete inevitavelmente a George Orwell e ao final de ‘A Revolução dos Bichos’: ‘E olhou alternadamente para homens e porcos (…) e não viu nenhuma diferença entre um e outro.”

Márcia Denser
Os EUA são mestres em inventá-los: de dez anos para cá – e tomo os filmes de Hollywood como testemunha – 1) devido à consolidação da indistinção política entre democratas e republicados; 2) ao envelhecimento das bandeiras neoconservadoras, tais como a cruzada anti-muçulmana, o “renascer do patriotismo”, o “moralismo religioso texano-americano”, sem contar o próprio “terrorismo” como pretexto neo-imperialista – o “bandido”se materializa na figura do vice-presidente, tendo Dick Cheney, vice de Bush, que “absolutamente não via diferença entre interesses públicos e privados”, como parâmetro e inspiração.
 
Ainda que a famosa proporção – 99% de pobres para 1% de ricos, detentores da riqueza global – não tenha se alterado sequer milimetricamente.
 
Voltando à questão dos vices: os exemplos na filmografia, nos quais não vou me alongar, abundam, citando apenas o recentíssimo “Red” (“Aposentados e Perigosos”), concentrando na figura de extrema direita, autoritária, implacável, corporatista, anti-políticas sociais,etc., o Inimigo – que, por sua vez, concentraria o Ódio Coletivo –, enquanto o presidente se manteria intocável, incólume, imaculado e de touca (como se isto fosse possível), uma Entidade Benigna Onipresente – ou pós-Deus-ex-machina  - ao qual “seria possível recorrer em caso extremo” (outra besteira não menos extrema).
 
O próprio Brasil de Dilma não é exceção ou o vice-Michel Temer é o quê? Além do nosso bad-guy de plantão?
 
Conquanto, para muitos, a exemplo do meu querido Luís Nassif, a estratégia política de Dilma tenha sido tão eficiente a ponto de haver deixado o quadro político nacional praticamente “sem oposição”. Diz ele que “se Lula foi uma espécie de Pelé da política brasileira contemporânea, Dilma Rousseff tem se revelado um Coutinho.”
 
Ele tenta explicar o atual dilema da oposição, lembrando o Brasil pós-Sarney, onde as ideias políticas quase sempre acompanharam, com alguma defasagem, as grandes ondas internacionais. A Constituição de 1988 foi o grande documento a sinalizar os novos valores que acompanhariam o país nos anos posteriores. Uma das ideias-força foi a descentralização, revertendo o pesado espólio do regime militar; outra, a questão da cidadania, das políticas sociais, da universalização dos direitos civis, do renascimento da sociedade civil.

FHC empunhou a bandeira da modernização, mas jogou-a fora na crise do câmbio em 1999 e no apagão, que novamente foi assumida por Lula. Na década que marcou o ressurgimento da sociedade civil brasileira, o PSDB fugiu do povo.
 
Nassif: “Beneficiado pela explosão dos preços internacionais de commodities, Lula conseguiu atender a todos os setores da economia e deixar de herança a explosão do mercado de consumo de massa. Trouxe o PT para perto do centro e tornou-o o primeiro partido socialdemocrata brasileiro no estilo europeu – porque casando bandeiras sociais com alianças econômicas e, principalmente, com participação popular através dos sindicatos e movimentos sociais. Tirou do PSDB sua bandeira.”
 
Sem bandeira, restou à oposição o discurso da negação: apontar as vulnerabilidades do governo Lula. A partir daí, poderia juntar os cacos e se preparar para as próximas eleições, desde que conseguisse mostrar o contraponto na sua principal vitrine: São Paulo.
 
Ainda segundo Nassif, aí entra a habilidade de Dilma: “1.Gestão. Há anos aponta-se a ineficiência do Estado e exige-se melhoria na gestão. O governo Dilma instituiu a Câmara de Gestão, definiu maneiras gerenciais de trabalhar o PPA (Plano Plurianual), montou sistemas de monitoramento online nos ministérios e conseguiu a consultoria da maior bandeira brasileira de gestão, o empresário Jorge Gerdau. Com exceção de Minas, nenhum outro estado tucano conseguiu implementar práticas gerenciais modernas. 2. Aparelhamento da máquina. Ponto sensível das críticas à Lula. No primeiro ano do governo Dilma, sete ministros caíram e a força política que herdou do seu padrinho tem permitido enquadrar os aliados.3. Conflitos com a mídia. Desde o primeiro dia Dilma praticamente desarmou os antigos críticos.”
 
E conclui: “A essência do governo Dilma não mudou em relação ao governo Lula. Mas ela conseguiu esvaziar praticamente todas as bandeiras da oposição. Não é à toa que chega ao final do primeiro ano com índices de popularidade recorde enquanto, na outra ponta, o PSDB se desmancha. A única esperança do PSDB seria o governador Geraldo Alckmin montar uma gestão inesquecível, eficiente. Se depender do que foi mostrado até agora, o país caminha para um quadro politicamente delicado: um governo sem oposição.”
 
Inesperadamente, após tantos elogios, a questão retorna (“lacanianamente: o retorno do reprimido?”) – incontornável e indigerível – (editorial de Carta Maior de 8/2): como enfiar um Kassab na nave eleitoral do PT em Sampa, isto é, na vitrine principal apontada por Nassif?
 
Aliás, como definir a abrangência duma frente política? Até onde é possível ampliá-la sem reduzir diferenças históricas a ilusões? O dilema não é novo na trajetória da esquerda e já rendeu frutos desastrosos na forma de rendição ou isolamento. O assunto volta com força na campanha municipal de São Paulo, onde o PT debate a hipótese de uma aliança com o PSD, do atual prefeito Gilberto Kassab, que indicaria o vice na chapa encabeçada pelo ex-ministro Fernando Haddad.
 
Derrotar o PSDB em São Paulo era uma meta importante– aliás, para muitos, como Nassif – ele já estaria derrotado. E, nesse caso, a aliança PT/Kassab, pupilo de Bornhausen, não teria sentido, pois significaria a inclusão da extrema- direita – extrema direita espertamente enrustida sob a “demonologia do embaço” incolor, inodora, insípida e auto-autista kassabiana e seu bom-mocismo de araque e à guisa de contramedidas que são “a alegria da galera hiper-neo-con paulistana” – tornando o vatapá literalmente indigerível.
 
E inevitavelmente nos remetendo a George Orwell e ao final de “A Revolução dos Bichos” – espécie de alegoria antológica, que virou bizantina, da disputa entre stalinistas e trotkystas: E olhou alternadamente para homens e porcos, porcos e homens, e não viu nenhuma diferença entre um e outro."
 
Afinal, com esse tipo de amigos, quem precisa de inimigos? Vice-presidente incluído.

Publicado originalmente no "congressoemfoco"

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