Crônica

Sócrates e eu

Contardo Calligaris
Estudando a história da filosofia, acabei me interessando pelos transtornos mentais. O ensino era intenso (seis horas por semana durante os três anos do que se chamava, na época, liceu), e os professores, ótimos, mas a sucessão dos filósofos e dos seus pensamentos me seduziam como se fossem uma galeria de maluquices, mais ou menos graves.

Começava com os pré-socráticos naturalistas, discutindo para saber se o mundo era feito de água, de ar ou de um elemento invisível. Enquanto isso, Parmênides e Heráclito discutiam para saber se nada muda ou tudo muda.

Eu achava tão interessante quanto as conversas que escutava no refeitório de um hospital psiquiátrico que eu visitava, às vezes, com meu pai.

Com Platão, a coisa piorou. A ideia fundamental (ou o que eu entendia dela) me parecia propriamente delirante: existiria um mundo de formas perfeitas, graças às quais as coisas do nosso mundo (imperfeito) teriam qualidades.

Explico: imagine um parque, tipo Inhotim, com a Beleza, a Justiça, a Virtude, a Feiura, o Triângulo, o Caramba etc. Se as coisas aqui, fora de Inhotim, nos parecem belas, triangulares ou "do caramba" seria porque a gente, em alguma vida prévia e esquecida, passeou pelo jardim de Inhotim e viu as formas ideais.

O alívio foi encontrar, enfim, alguém razoável, como Aristóteles e, bem mais tarde, os empiristas. Eles, ao menos, achavam que a Beleza, o Triângulo e o Caramba não estavam num jardim de Inhotim, mas tinham surgido na nossa mente a partir da experiência. Tipo: à força de ver coisas que acho do Caramba (ou seu contrário), eu me faço uma ideia do que seria o Caramba.

Enfim, espero que dê para entender como a filosofia me introduziu à psicopatologia e, em particular, me deu vontade de estudar os caminhos pelos quais se formam (e se deformam) as ideias e as operações do pensamento humano. Fui estudar exatamente isso, com Jean Piaget.

Conto essa história como premissa para explicar que, na época do liceu e no começo dos estudos universitários, eu achava Sócrates um chato de galochas (claro, Sócrates não escreveu nada: o que eu conhecia dele era apenas como protagonista dos diálogos de Platão).

Digo isso porque acabo de ler "Sócrates: Pensador e Educador: a Filosofia do Conhece-te a ti Mesmo", de Paulo Ghiraldelli Jr. (ed. Cortez). Li prevenido contra Sócrates ("ele, de novo?"). Mas o livro me conquistou.

Claro, continuo não sendo um grande fã. Ainda me irrita o relato (por Platão) de que ele, condenado à morte, teria aceitado sua pena, embora a considerasse injusta.

Na época, em Atenas, isso devia fazer sentido (como Ghiraldelli explica perfeitamente), mas, para mim, moderno, é inaceitável que o respeito pelas leis seja mais importante do que o sentimento, que cada um tem, do que é justo ou não.

Mas tanto faz. O que importa é que Ghiraldelli, separando Sócrates de Platão, tornou Sócrates muito mais próximo de nós e mais interessante –ao menos para mim.

Um exemplo é o capitulo "O Cão e o Lobo ou da Falsidade".

Sócrates viveu tentando inventar e promover uma maneira de pensar que não era nem a defesa da tradição nem a luta de opiniões tentando persuadir ao maior número.

De um lado, algo era verdade porque estava em sei lá qual texto sagrado ou porque era assim que pensavam nossos avós. Do outro, a verdade era aquela opinião que prevalecia pela "habilidade" retórica de quem a defendia.

De fato, acho que essas duas modalidades do pensamento nunca cessaram de ser dominantes; de qualquer forma, elas são as modalidades dominantes hoje –como na Atenas de Sócrates.

Ou seja, entre quem invoca algum deus e quem grita (ou "escreve") mais alto e ganha mais "likes", resta um espaço exíguo para argumentar e procurar, aos poucos, algum fragmento de verdade. É nesse espaço que Sócrates se movimentava. É o espaço onde eu gostaria de morar.

Outro exemplo. Ghilardelli comenta repetidamente a ideia socrática de que, para valer a pena, uma vida precisa ser "examinada" (entenda-se: não examinada pelos outros, que a julgariam, mas pelo próprio indivíduo, que se interrogaria sobre ela, que tentaria contá-la para ele mesmo, em suma, que se examinaria).

Nesse sentido, a psicanálise tem um lado socrático: Cesare Pavese, o escritor italiano, não tinha simpatia por Freud & Co., mas reconhecia (quase a contragosto) que a psicanálise enriquece a vida interior.

Não é pouca coisa... 

Original aqui

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