Colunistas

A globalização das desigualdades

“Esse novo capitalismo destroçou a capacidade dos seres humanos viverem e construírem juntos como iguais e não apenas como consumidores ou forças majoritárias”

Márcia Denser
De todas as reflexões e obras que apareceram nos últimos anos sobre democracia e crise de valores, o ensaio A sociedade dos iguais (Edições Manantial) do francês Pierre Rosanvallon (catedrático de história de política moderna e contemporânea no Collége de France e diretor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais) está sendo considerado pela crítica como o mais profundo. Nele, é traçada a história das políticas em favor da igualdade que marcaram os século XIX e XX, respondendo à crise contemporânea marcada por uma perigosa dualidade: o avanço da democracia política, por um lado, e de outro, a lenta desaparição do laço social que cria e alimenta as sociedades democráticas.

Com rigor, ele esmiúça as teorias da justiça promovidas por autores como John Rawls e seu ideal: a igualdade de possibilidades e sua aliada principal, a meritocracia. Rosanvallon destaca como entre a revolução conservadora encarnada por Margaret Thatcher e o ex-presidente Ronald Reagan e a posterior queda do comunismo surgiu um novo capitalismo que mudou a fase da história, mas esse novo capitalismo destroçou a capacidade dos seres humanos viverem e construírem juntos como iguais e não apenas como consumidores ou forças majoritárias. O autor moderniza então o termo da igualdade entendida não mais como uma questão de distribuição das riquezas mas sim como uma filosofia da relação social.

Em entrevista recente à Eduardo Febbro em Paris, aqui condensada, ele aborda os conteúdos essenciais de seu livro. Praticamente para qualquer lugar que se olhe, a democracia vive um processo de degradação potente. No caso concreto do Ocidente, a impressão é de que os valores democráticos mudaram de planeta. Isso se deve a que, há 30 anos, nos países da Europa, nos Estados Unidos e em praticamente todo o mundo, houve um crescimento extraordinário das desigualdades. Podemos inclusive falar de uma mundialização das desigualdades. Trata-se de um fenômeno espetacular.

Há cerca de 20 anos, as diferenças entre os países diminuíram. As rendas medidas na China, Brasil ou Argentina se aproximaram das da Europa. No entanto, em cada um desses países, as desigualdades se multiplicaram de forma vertiginosa. Esse problema concerne ao conjunto dos países. A Europa é o caso mais emblemático porque o aumento da desigualdade surge logo depois de um século de redução das desigualdades. Entre a Primeira Guerra Mundial e a primeira crise do petróleo, nos anos 1970, na Europa e nos EUA houve uma redução espetacular das desigualdades. Podemos dizer que, para a Europa, o século 20 foi o século da redução da desigualdade. Agora estamos no século da multiplicação das desigualdades.

Neste sentido, ao mesmo tempo em que a democracia se afirma como regime, ela morre como forma de sociedade sob o peso da desigualdade. O laço entre os cidadãos desaparece. Aliás, como regime, a democracia tende a progredir em todo o mundo. Mas sabemos que ela se define também como uma forma de sociedade na qual podemos viver juntos uma vida em comum, uma sociedade com relações de igualdade. Contudo, a democracia política do sufrágio universal e da liberdade progrediu ao mesmo tempo em que a democracia da sociedade dos iguais perdia vigência. Hoje vemos um divórcio completo entre o cidadão eleitor e o cidadão colega de trabalho. Na maioria dos países estão se multiplicando os guetos e as várias formas de separação social.

A história da democracia nos mostra que ela tinha como objetivo a construção de um mundo comum entre os habitantes de um país. Hoje vemos a multiplicação dos mecanismos de isolamento. Isso é muito perigoso porque se a distância entre a democracia política e a democracia social continua aumentando, a própria democracia política que corre um grande perigo.

Em suma, o desgarramento da democracia é a desaparição do laço entre os componentes da sociedade. O grande problema da sociedade moderna tem raízes no fato de que é uma sociedade de indivíduos, que devem formar um todo social, ao mesmo tempo que as pessoas tenham êxito individualmente, sendo reconhecidas pelo que são. Mas isso implica saber compor essas singularidades e oferecer um marco comum. E é precisamente esse marco comum que está faltando. Por conseguinte, essa demanda de singularidade só se expressa mediante um individualismo feroz e egoísta. Esse problema do indivíduo está no coração da modernidade.

O que aproxima as pessoas não é o mero fato de compartilharem uma condição, como também trajetórias e situações. Hoje se requer outra forma de pensar o laço social.

Precisamos que na sociedade haja redistribuição e também solidariedade, mas para que haja solidariedade é preciso que antes se tenha o sentimento de que pertencemos a um mundo comum. Isso é o que ocorreu na Europa: se o Estado do Bem Estar Social se tornou tão importante é porque houve a experiência das duas guerras mundiais e o medo das revoluções. Se o Estado assumiu tal importância é porque houve o sentimento de uma desgraça vivida em comum, que resultou decisiva.

Hoje o que falta a nossas sociedades é precisamente a possibilidade de refazer o laço social. A igualdade é uma forma de fazer isso. Um filósofo britânico, John Stuart Mill, tomava o exemplo da relação entre homens e mulheres. Mill dizia: a igualdade entre o homem e a mulher não consiste em que sejam o mesmo, em que se pareçam, mas sim que vivam como iguais. O problema de nossas sociedades é esse: não vivemos como iguais.

E isso ocorre porque há pessoas que vivem em condomínios fechados, em mansões rodeadas de muros e alarmes enquanto outros vegetam na pobreza. Não vivemos como iguais porque há cada vez menos espaços públicos. Temos então sociedades fechadas em si mesmas e não sociedades onde haja um mundo comum. A igualdade é, antes de tudo, isso: fazer um mundo comum. Mas esse mundo comum não pode ser construído se as diferenças econômicas entre os indivíduos são estratosféricas, se todo mundo não joga as mesmas regras do jogo.

Por isso, tenta-se construir essa ideia da igualdade redefinida como uma relação social em torno de três princípios: singularidade (reconhecimento das diferenças), reciprocidade (que cada um jogue as mesmas regras do jogo) e comunalidade (a construção de espaços comuns). Na história do mundo, se as cidades foram centros de liberdade foi porque criaram algo em comum entre os indivíduos. As cidades não foram somente lugares de produção econômica ou lugares de circulação. Não, elas estavam organizadas em torno do fórum, da praça pública, de espaços que permitiam a discussão entre as pessoas. É isso que está desaparecendo hoje.

Segundo Rosvallon, a igualdade ocupou o centro da sua reflexão para pôr fim a uma visão de progresso social percebida unicamente a partir do tema da igualdade de possibilidades. Está claro que a igualdade de possibilidades não existe mais. A ideologia do mérito, da virtude, da igualdade de possibilidades, não pode servir para reconstruir sociedades. Por isso, ele critica as chamadas teorias da justiça, Essas teorias, mesmo as mais progressistas, como o prêmio Nobel de Economia Amartya Sem ou John Rawls, seguem inscritas em uma filosofia das desigualdades aceitáveis enquanto essas desigualdades estejam articuladas em torno do mérito, da ação do indivíduo.

Esse não é o modelo da boa sociedade. O modelo da boa sociedade não é a meritocracia. O bom modelo é o da sociedade dos iguais entendida no sentido de uma sociedade de relação entre os indivíduos, uma relação fundada sobre a igualdade pura e simples. É preciso desconfiar dessa ideia de igualdade de possibilidades, ou meritocracia, porque se vamos até as últimas consequências terminamos por justificar as desigualdades e a falta de reação contra elas na medida em que são legitimadas.

O sociólogo britânico Michael Young foi o primeiro a falar nos anos 60 da meritocracia, que é um velho ideal dos séculos XVIII e XIX. Young definia como um pesadelo todo país que fosse governado pela meritocracia. E é um pesadelo porque, neste caso, ninguém teria direito a protestar contra as diferenças. Se todas as diferenças estão fundadas sobre o mérito, aquele tem uma condição inferior a tem por culpa própria. Trata-se então de uma sociedade onde a crítica social não teria mais lugar.

É preciso ter consciência do limite do ideal meritocrático, do limite das teorias da justiça, do limite das políticas sobre a igualdade das possibilidades. Mesmo que essas políticas tenham seu espaço de validade, elas não representam a bússola que deve orientar uma sociedade para sua transformação.

A emancipação humana passa hoje pela condição de que cada pessoa seja reconhecida pelo que tem de específico. Por conseguinte, a igualdade não pode ser mais a uniformidade, mas sim uma igualdade da singularidade. É preciso voltar aos fundamentos do que foi a revolução democrática moderna e reviver em um sentido autêntico a noção de igualdade, que não é a noção de igualitarismo. O igualitarismo é a visão aritmética da igualdade. Mas o que se tenta definir é uma ideia da igualdade como relação.

Para o autor, a democracia é o regime natural do moderno. Uma vez que vivemos em sociedades que não podem mais ser reguladas pela tradição. Por conseguinte, estamos em sociedades onde devemos organizar o mundo comum a partir da discussão pública. E se isso é tão decisivo é porque se trata de uma experiência que sempre é difícil. Aqueles que olham a história da democracia como a história de um progresso que vai da tirania à democracia se equivocam. A história da democracia é uma história de êxitos e traições, de altos e baixos.

Historicamente, o que fascina na democracia é que ela é a história de uma experiência frágil e não uma espécie de progresso acumulativo. É a história de uma experiência, de uma indeterminação, de um combate que nunca acaba, de uma luta entre os cidadãos para que encontrem o caminho de uma vida comum. No fundo, a democracia é isso: organizar a vida comum sobre a deliberação de regras que se fixam e não sobre algo que teria nos sido dado como uma herança.

E Rosanvallon conclui: “Este é o ponto essencial: a democracia é uma experiência sempre frágil. Não podemos nos tornar democratas crédulos: precisamos ser democratas atentos e vigilantes. Não há democracia sem vigilância de suas debilidades e dos riscos de manipulação. O cidadão não é simplesmente um eleitor. Ele deve exercer esta função de vigilância individual e coletiva.”

Publicado oriinalmente no "congressoemfoco"

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