Coluna do Mirisola

De igual para igual

“Quantas comunhões e quantos suicídios o horizonte nivelou em Copacabana nos últimos 56 anos”

Marcelo Mirisola
Têm uns dias que o sujeito acorda uma barata. E esse fenômeno nada tem a ver com literatura ou ficção. Mas com o tamanho da vida que ele vive. Tanto faz se mora debaixo de uma ponte ou no hotel Fasano de Ipanema: regra geral, o sujeito (ou a barata em questão) é um nada minúsculo diante daquilo que os místicos chamam de dom … e que eu , aqui na minha posição incômoda de barata, chamaria de tamanho. A fim de simplificar as coisas, e conciliar os humores, digamos que o dom da vida é imensurável.

São, portanto, raros os momentos em que a criatura consegue se aproximar do mistério que o embala. Assim é que os milagres acontecem.

Tava pensando nisso ontem de madrugada, quando olhei pro Grima ao meu lado, e lembrei de um texto dele cujo pressuposto eram os milagres, vamos chamar assim “milagres”, advindos do exercício do bom papo. E já que o papo tava bom (ao menos nas minhas lembranças…), aproveitei o ensejo, peguei o Grima pelo braço, e divaguei sobre a história de amor que Vinicius de Moraes viveu na Bahia nos idos de 1973.

Ele, Grima, me falou algo sobre seu improvável parentesco com Gessy, a mulata do Vinicius, de sua familia baiana, e tardes passadas em Itapuã. “Já era, meu Rei”. Idos tempos. Tempos idos.

A partir daí, acordamos o seguinte: que, a partir de nossa conversa e diante da convulsão na Europa e da invasão dos sushi-mans nos botecos do eixo Rio-São Paulo, o amor seria carta fora do baralho. Vinícius deixaria de ser prioridade, os chimpanzés não mais praticariam o cafuné, e a Bahia, independentemente de Raulzito e do Marcelo Nova, estaria condenada a Ivete Sangalo ad perpetuam e à produção industrial de acarajés, portanto decidimos extinguir a Bahia, fodida e muito mal acabada.

– Onde viemos amarrar o jegue, meu Rei? – justo o Grima, que é majestade, tem essa mania de dar títulos nobiliárquicos às baratas do condomínio.

Não sei, não faço a mínima idéia. E mais. Era quase uma da manhã e eu estava bebinho. O que me recordo é de que, apesar dos pesares, Grima fazia aniversário e mostrou-me sua nova tatuagem, sim, apesar de a Europa ter virado geléia* e de a Ivete Sangalo – heil, Ivete! – ameaçar-nos com outro carnaval em 2012, Grima parecia bem feliz aos 56 anos. “Já é demais, não acha?”.

Ah, sim, acho sim. Pois eu falava dos momentos raros da aproximação. Que para chegar a essa comunhão entre o que a gente vive e aquilo que a vida faz da gente, para se chegar a esse ponto, o sujeito pode escrever sete volumes em busca do tempo perdido ou simplesmente admirar a mulher-salamandra que o Grima tatuou no braço. Ao fundo, Bortolotto gritava: “Não vai bancar a louca/não vai pensar em mim com outro pau na sua boca”. Bela noite.

Eu também tenho um peixinho muito do mequetrefe tatuado no braço, gosto dele.

De modo que esqueci um pouco a geléia européia e fiquei sabendo que não valia a pena investir na loirinha mignon porque ela era uma menina que gostava de meninas, nesse momento, lamentei ter perdido Paulinha e enchi o coração de esperança ao lembrar do sotaque paulistano da Natascha lá em Guarulhos, vida na veia. Outros cais. Veleiros. Chifres. Vento e frio na barriga, um novo amor e os fantasmas do Rio de Janeiro me chamando de volta.

Depois da quinta dose, os espíritos zombeteiros misturam chiclete com banana, copan com copacabana. E eu, nada modesto e bastante interesseiro, deixo a vida e a vida depois da vida me levar, e quando isso acontece invariavelmente as estações se misturam. Dessa vez, fui interrompido exatamente onde a linha do horizonte dissecava João Antônio. Mais ou menos em janeiro de 1972, às cinco horas da manhã, como se eu fosse refém do dia sanguíneo que ameaçava nascer sobre os cornos do autor de “Perus, Malagueta e Bacanaço” – e o sol nasceria de qualquer jeito … – a aurora era guilhotina e as palavras do degolado ameaçavam um dia radiante: no horizonte, as lâminas já começavam a cortar nossas gargantas: “Sobre o mar, haverá um toque ainda indefinido, mas já sanguíneo, vermelho, inquieto. Mais tarde aquilo será o sol”. O sol.

O mesmo sol inclemente que vinte anos depois castigaria os ombros dourados do outro poeta, aquele que virou estátua no posto 6.

Quantas comunhões e quantos suicídios o horizonte nivelou em Copacabana nos últimos 56 anos, penso eu. Grima nascia e o sol não se fazia de rogado naquela manhã de 8 de dezembro de 1955. Também penso nos garçons desde sempre indo pros pontos de ônibus, exaustos depois de mais uma noite à la carte, pouco se cagando pro horizonte, nem aí pros amantes e aniversariantes, nem aí pros suicidas. O sangue injetado nos olhos dos garçons. Resolvi que esses caras que entregam a vida a 10%, são a minha linha do meu horizonte – vampirinhos, amarrotados, fedendo a cigarro e suores alheios, ah, só mesmo os garçons para rivalizarem com o sol sanguíneio do João Antônio, quer dizer: isso valia prum mundo que não existia mais, do qual eu e o Grima fomos expulsos: “Já era, meu Rei”. Um  táxi desce a Augusta .

Mas não tenho dinheiro. Quando meu chapa, Ademir Muniz, surge das profundezas do Clube Noir, e empresta cinquentão. Valeu, Ademir, depois te pago. Uns quinhentos metros adiante, na frente do Hotel Jaraguá, me veio uma certeza tão grande quanto o endereço onde moro e tão arrebatadora quanto a vida que, naquele instante, cumpria seu roteiro e ceifava: tive a convicção que a vida usufruia de mim. Era como se o mistério mordesse o próprio rabo, senti meus ossos esfarelarem e a alma em estado de graça.

O mesmo sentimento (ou movimento) que, há pouco, lá no Clube Noir, fez com que eu e o Grima nos aproximássemos tão intensamente da vida: na mesma proporção e ao contrário: feito canibais – de igual para igual. Um troco. Quase uma colisão. Então, eu disse pro taxista:

– Depois do viaduto, dobramos a direita e seguimos pela rua da Abolição, que é paralela à Major Diogo, quase Brigadeiro, esquina com lugar nenhum. Eu moro lá, e isso – falei pro taxista – isso é um milagre.

Sobre o autor

Marcelo Mirisola
* Considerado uma das grandes revelações da literatura brasileira dos anos 1990, formou-se em Direito, mas jamais exerceu a profissão. É conhecido pelo estilo inovador e pela ousadia, e em muitos casos virulência, com que se insurge contra o status quo e as panelinhas do mundo literário. É autor de Proibidão (Editora Demônio Negro), O herói devolvido, Bangalô e O azul do filho morto (os três pela Editora 34) e Joana a contragosto (Record), entre outros.

Outros textos do colunista Marcelo Mirisola.

Publicado originalmente no "congressoemfoco".

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