Opinião

Crise na Bolívia de Evo

O Estado de S.Paulo - Editorial
Ao inaugurar o seu segundo período de governo, em janeiro de 2010, o primeiro ato do presidente Evo Morales foi consagrar a transformação da Bolívia em Estado Plurinacional, conforme previa a Constituição que ele fizera redigir, aprovar e ratificar no ano anterior. A nova Carta conferiu poderes políticos sem precedentes aos 36 grupos indígenas que somam 2/3 da população nacional de 10 milhões de habitantes - o Congresso, por exemplo, passou a se chamar Assembleia Plurinacional e a sua composição deve refletir esse perfil multiétnico. Além disso, as "nações" foram dotadas de autonomia também inédita em assuntos locais, em um complicado enlace com os órgãos de governo dos 9 departamentos, 112 províncias, 327 municípios e 1.384 cantões que compõem a geografia política do país vizinho.

Em tese, portanto, as comunidades que vivem na reserva do Parque Nacional e Território Indígena Isiboro-Sécure (Tipnis), na Amazônia Boliviana, deveriam ter sido ouvidas sobre o projeto, anunciado há dois anos pelo governo de La Paz, de construir uma estrada de 306 quilômetros ligando San Ignacio dos Moxos, no Departamento nortista de Beni, a Vila Tunari, no Departamento de Cochabamba, no centro do país. O traçado atravessa a área protegida, afetando os seus recursos naturais e os meios de subsistência da maioria de seus habitantes. Estes suspeitam de que por trás da obra de US$ 415 milhões, dos quais US$ 322 milhões financiados pelo BNDES, a cargo da empreiteira brasileira OAS, está a intenção do ex-líder sindical cocalero Evo Morales de facilitar a atividade dos plantadores de coca da região, pouco preocupados, aliás, com o meio ambiente.

Em 15 de agosto, com a construção já começada, os indígenas contrários ao empreendimento iniciaram uma pacífica marcha de protesto para La Paz, onde esperavam chegar em fins de setembro, no que deveria ser o coroamento de um movimento de opinião pública pela paralisação dos trabalhos. A pressão se beneficiaria da queda da popularidade de Evo, reduzida a 30%, pela frustração com a alta dos preços e a perpetuação dos níveis de pobreza no país, desmentindo as promessas do líder populista, aliado do bolivariano Hugo Chávez. Contra esse pano de fundo, a mando de uma autoridade ainda não identificada, 400 policiais militares investiram no domingo atrasado contra os participantes da marcha.

Usaram cassetetes, bombas de gás, armas de fogo. Ninguém morreu, mas houve dezenas de feridos e crianças desaparecidas em meio ao pânico. Estilhaços da violência policial atingiram em cheio o governo. Os ministros da Defesa e do Interior denunciaram a violência e renunciaram. Evo pediu desculpas à população e criou uma comissão, com participação da Corte Interamericana de Direitos Humanos, para apontar os responsáveis pela explosão de truculência - que marcará a história de Evo, que sempre se apresentou como paladino da luta contra a secular opressão dos indígenas bolivianos. Para pôr panos quentes na crise, a Assembleia Plurinacional, controlada pelo MAS, o partido do presidente, foi incumbida de convocar um referendo sobre a estrada.

Não está claro se votarão apenas os moradores da área afetada ou também os eleitores dos departamentos beneficiados. Se estes puderem votar estará criada uma causa potencial de novos conflitos políticos. De toda forma, os indígenas de Tipnis não se opõem à ideia. Com a obra já em andamento (embora suspensa desde o fatídico domingo), não faz sentido, argumentam, promover uma consulta pública sobre a sua execução. Os críticos mais radicais veem o "imperialismo brasileiro" na obra apoiada pelo BNDES por decisão do então presidente Lula, executada por uma construtora que ajudou a financiar as campanhas presidenciais de ambos os lados da fronteira e que estaria sobrefaturando o serviço. O Brasil está certo ao se distanciar do novo ciclo de tensões na Bolívia, que pode desembocar sabe-se lá no que. O país, escreveu domingo no Estado o jornalista americano Mac Margolis, tem "memória longa e pavio curto".

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