Coluna do Mirisola

Itamar Franco, do outro lado da linha

"Ah, quanta merda, quanta mentira, ou, se vocês quiserem chamar essa piada de mau gosto de contexto, tudo bem. Então chegou o carnaval de 1993, e tudo mudou"

Marcelo Mirisola*
A realidade não suporta mais os mecanismos e/ou as estruturas de poder do século passado. E já faz um bom tempo. A crise, todo mundo sabe, é de representatividade. Hoje em dia, a geografia, as leis e as fronteiras são apenas detalhes insignificantes diante da força despirocada daquilo que - ainda - atende pelo nome de História. Tanto faz o lugar onde o mundo vai explodir (ou acabar), seja na Grécia,em Trípoli, ou no Jardim Miriam.

Antes de continuar, porém, quero deixar claro que não dou muita bola nem pra realidade e nem pras estruturas e os seus poderes respectivos, dos séculos passados e dos que virão.

Em outros termos, eu diria que viver é ridículo e perigoso; e a gente (eu me incluo, fazer o quê?) tem que se distrair antes do fim, pagar as contas e – se possível - dar uma banana para a distinta platéia. Cada um se vira como pode, atravessa as ruas e amarra os cadarços do jeito que melhor lhe convier, dia após dia. Eu não faço diferente: sigo devendo meus condomínios e ganhando o pão de todo dia. Às vezes, só pelo prazer de ver o circo pegar fogo, acerto no alvo. Outras vezes (a maioria delas), erro feio. Não confio em mim. Não confiem em mim.

O engraçado é que foi a morte de Itamar Franco que me inspirou esse pequeno desabafo.  Pois bem, eu falava que existe uma crise de representatividade.

                                            ***

Era 1990, Cazuza agonizava na capa da Veja, a Aids  brochava o mundo inteiro e empatava a alegria de muita gente, especialmente a minha. Sarney havia zoado o Brasil e a inflação estava fora de controle. Numa campanha constrangedora, Fernando Collor se vendeu como Caçador de Marajás e foi eleito, dois anos depois seria “impichado” por um Congresso Nacional mais podre que o sistema de esgoto da casa de praia do PC Farias. Itamar Franco assumiria o poder. No ar, ainda bordejavam caras-pintadas, Lindberg Farias, o PT “ético” e um Lula que vociferava contra as “elites dominantes”. Senna era o herói do Brasil e os irmãos Leandro & Leonardo haviam estourado nas paradas de sucesso com Talismã (trilha sonora dessa meleca), ah, quanta merda, quanta mentira, ou, se vocês quiserem chamar essa piada de mau gosto de contexto, tudo bem. Também foi no começo da década que matou Kurt Cobain de tédio que conheci Marisete (leiam Charque, ed.Barcarolla, vai sair em agosto).  Mais ou menos era essa a piada, digo, o contexto, somado ao xarope do Faustão que já enchia o saco de todo mundo em domingões enfadonhos e intermináveis.

Então chegou o carnaval de 1993, e tudo mudou. Itamar Franco estreava ao lado de seu ministro da Justiça nos camarotes da Marquês de Sapucaí. O presidente e o seu ministro, Maurício Corrêa, se esbaldavam feito pintos no lixo, sendo que o ministro encontrava-se visivelmente bêbado. E bem no meio da dupla, envolvida por abraços e beijinhos, a mulher que, a meu ver, mudaria a história do país, Lílian Ramos - sem calcinha. O fotógrafo, a quem eu gostaria de prestar uma homenagem mas não sei o nome, lá da avenida, achou o melhor ângulo - de baixo para cima - e atirou.  No dia seguinte, o Jornal Nacional invade a casa da atriz-modelo-e-candidata a primeira-dama, e flagra a conversa dela com Itamar, supostamente do outro lado da linha. As juras de amor e as condições que Lílian estabelecera para um “namoro sério”, bem, na minha opinião, serviriam como base não só para o bem-sucedido plano real que viria na seqüência, mas como fundamento legítimo de representatividade. Valeu por todos os pódiuns que Senna subiu e por todas as mulheres que Ayrton não comeu, e foi – pelo menos para mim - a primeira esperança de cura da Aids, creio que as condições para o “namoro sério” de Lílian Ramos deviam estar gravadas como cláusulas pétreas em nossa Constituição, cadê você Lílian?

Todo o esgoto de Brasília transformou-se em água cristalina que brotava de virgens veredas, quando a modelo disse que ia “pensar”, nesse momento – independentemente da resposta de Lílian – o Brasil já era outra nação e Itamar entrava para a história como o herói de um país que descobria outro país. Nunca me senti tão representado por um presidente da República, e nunca me diverti tanto. Nunca o primeiro magistrado da nação havia sido tão brasileiro como Itamar Franco do outro lado da linha. Nem Getúlio, que enfiou um balaço no peito, tampouco Juscelino que mudou o eixo de lugar, muito menos Figueiredo que, num surto de sinceridade, disse que preferia o cheiro de bosta de cavalo ao cheiro do povo. Tampouco Lula, acho que no Guarujá - lembram? - de bermudão na praia, com aquele isopor sobre a cabeça encenando o segundo estágio a caminho da evolução da espécie (o primeiro estágio foi ter vendido a alma pra tal das “elites dominantes”), ninguém, nem Fernando Henrique quando fumou Deus sem tragá-lo, ninguém conseguiu superar Itamar Franco, nem antes e never more. Ninguém!

Penso que Itamar devia ter inaugurado uma dinastia no Brasil, com o topete bravio se elevando feito uma onda na respectiva coroa. Nós, monarquistas, perdemos essa oportunidade.

Não só os presidentes que o sucederam, mas os políticos e os famigerados “formadores de opinião”, todos menos o povo de Minas Gerais que ele tão bem representou, todos se apequenaram e foram mesquinhos com Itamar. O escantearam. Não o entenderam.  O isolaram. Mandaram para Roma, para Lisboa, para Juiz de Fora. Como se ter ressuscitado o fusca fosse motivo de piada e não de poesia, essa gente nunca esperou a resposta de Lílian do outro lado da linha. Aprenda, dona Dilma! Itamar foi acusado de insensato quando decretou moratória em Minas Gerais, nessa ocasião cercou o Palácio da Liberdade e deslocou tropas para proteger as instalações de Furnas - num gesto heróico só comparado ao dia em que Pedro I venceu a morte e dos libertou do jugo de Portugal – disseram que Itamar Franco era um caipira.

As cenas do velório de Itamar ilustram bem o que se passou e o que se passa no Brasil. A expressão de saco cheio de Dilma Roussef  resume a arrogância e a estatura dela e dos outros ex-presidentes presentes na cerimônia, cambada de hipócritas, aproveitadores, pigmeus históricos. Dizem que Itamar não teve (ou não entendeu...) a dimensão do lugar que a história do Brasil lhe conferiu, acusaram-no de sortudo, Forrest Gump, ressentido, ingênuo, mal vestido e o diabo a quatro. Mas nunca na história do Brasil um Presidente foi tão brasileiro quanto Itamar Franco do outro lado da linha, esperando a resposta de Lílian Ramos... que deve ter pedido uma Keep Cooler e um tempo a Itamar, “melhor dar um tempo, né amor?”.

Agora é tarde.
 
* Considerado uma das grandes revelações da literatura brasileira dos anos 1990, formou-se em Direito, mas jamais exerceu a profissão. É conhecido pelo estilo inovador e pela ousadia, e em muitos casos virulência, com que se insurge contra o status quo e as panelinhas do mundo literário. É autor de Proibidão (Editora Demônio Negro), O herói devolvido, Bangalô e O azul do filho morto (os três pela Editora 34) e Joana a contragosto (Record), entre outros.

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