Coluna do Mirisola

Entrevista - Ugo Giorgetti

“Queria uma entrevista suicida, e acabei tendo uma aula de bom-senso. Tentei puxar a sardinha para o meu lado várias vezes, consegui algumas. Devo ter quebrado todas as regras de uma entrevista acadêmica e civilizada”

Marcelo Mirisola*
Faz uns três anos que entrevistei Ugo Giorgetti. Agora, revendo meus arquivos, não entendo porque cargas d’água deixei de publicá-la aqui no Congresso em Foco. O que eu lembro é que – uma ou duas semanas depois - fiz as mesmas perguntas para Nilsão Primitivo, e publiquei uma entrevista no lugar da outra. Esquisito né?

*****
Queria uma entrevista suicida, e acabei tendo uma aula de bom-senso. Tentei puxar a sardinha para o meu lado várias vezes, consegui algumas. Devo ter quebrado todas as regras de uma entrevista acadêmica e civilizada. Não deixei ele falar. Às vezes – admito – cheguei a ser importuno e grosseiro. Mas Ugo Giorgetti soube me driblar com elegância, e inteligência. Ele é maestro, afinal. Jamais havia feito uma entrevista, perdi a virgindade com o meu diretor de cinema nacional preferido. No lugar dele, confesso, teria interrompido a interlocução. Ugo Giorgetti tentou me ensinar que uma coisa é sair pela tangente. Outra, completamente diferente, é usar a inteligência para não se estropiar. Mas não adiantou nada. Eis o resultado:

Não pega bem ser inteligente, e ter talento hoje em dia? Ou só é possível exercer esses “dons” mediante a aprovação dos departamentos jurídico e de marketing?

Ao contrário. Só é possível exercer esses dons fora do âmbito dos departamentos jurídicos e de marketing. De preferência contando com a expressa desaprovação deles. E claro que a vida fica muito mais difícil.

Para mim, Giorgetti, quem tem “projeto” é engenheiro ou arquiteto,mesmo assim vou insistir: Por acaso, você teve (ou tem) algum “projeto” que foi desaprovado por esses dois monstrengos, e que foi adiante? Caso a resposta seja positiva, poderia me dizer em quais circunstâncias. Enfim, como foi que você conseguiu driblar os “monstrengos”?

Só há uma forma de driblar os mostrengos. São os editais públicos de algumas empresas, tipo Petrobras, que pelo menos organizam júris com pessoas exteriores à empresa e que fazem parte do meio cultural. Não é um drible de Garrincha, mas é melhor que nada.

Por que tanto bunda mole se dando bem? Por que os técnicos (psicanalistas,antropólogos, torneiros mecânicos, sociólogos, etc) tomaram o lugar dos artistas?

Não sei se concordo com você. Acho que os artistas nunca estiveram em nenhum lugar. Nós não servimos para nada, meu caro. Não temos a mínima importância nem nunca tivemos. Sempre comemos na cozinha dos poderosos junto com os criados. Nossos antepassados mais geniais eram obrigados a trabalhar para papas, duques e condes. E, além de produzirem maravilhas, nunca soube de reclamações.

Talvez eu devesse ter puxado a sardinha mais ostensivamente para o meu lado. Fiz essa pergunta pensando nos cronistas dos anos 50, 60, 70. Lembrei de Carlinhos Oliveira, Nelson Rodrigues, Paulo Mendes Campos, Rubem Braga. Então, refaço a pergunta: por que os jornais, e os meios de comunicação em geral, trocaram os escritores pelos técnicos? Quando leio um Drauzio Varella escrevendo (uma crônica?) sobre placentas dá vontade de pedir o chapéu, entende? Você não sente falta de uma resenha de Otto Maria Carpeaux? Da inconseqüência febril e bêbada de um Carlinhos Oliveira, de um arroubo de um Tarso de Castro? Claro, evidentemente esses caras viviam em outra época, e deram uma “morrida”, mas eu conheço um monte de gente por aí que tem talento para fazer algo parecido e que, no entanto, está escrevendo de graça em blogues. A propósito: você acompanha a “vida internética”?

Começando pelo fim: não, não acompanho o que você chama de “vida internética”. Quanto ao resto, acho que a mídia está cada vez mais se colocando a reboque dos leitores e expectadores. Se não aumentam a audiência, e ninguém está aumentando, os jornais e televisões querem, pelo menos, não perder. Então, procuram divulgar exatamente o que seus leitores querem ouvir. Não é mais o jornal que tenta informar e formar o leitor, é o leitor que determina o jornal. Questão de mercado. Como a sociedade está cada vez mais quadrada, opaca e restritiva, os veículos evitam figuras como Carlinhos de Oliveira... que eles acham não seriam bem aceitas pelos leitores. E não seriam mesmo.

Há mais uma coisa. Principalmente os leitores de jornais fazem parte de uma classe média de diplomados. Todos, hoje em dia, têm algum diploma. Houve, portanto, uma valorização enorme do acadêmico, daquele que é professor da universidade tal e tal, com mestrado em tal e tal lugar e doutorado não sei onde. Como aceitar então alguém como Otto Maria Carpeaux, que não tinha diploma de nada?

Não quero cair na armadilha de comparar um tempo com o outro. Mas não tem jeito, já caí. Aqui vai a pergunta: Se hoje não temos Glauber Rocha, não temos Pasolini, falta o quê? Romantismo? Ingenuidade? Bagos?

Falta exatamente aquele momento. Nem Glauber, nem Pasolini surgiram do nada. Era um momento histórico que permitia ou mesmo exigia Glauber ou Pasolini. Infelizmente, a presença deles não adiantou muito. Tudo o que Pasolini falava que ia acontecer, aconteceu pior ainda e não se pôde evitar.

Você não acha que – desculpe a grosseria do termo - , mas você não acha que aquela “passada de vara geral” que o personagem de Pasolini dá na “família burguesa” em “Teorema” não foi um recurso um pouco tolo diante do monstro que realmente ele, Pasolini, de certa forma antecipou , e queria denunciar? Digo, não foi um erro de estratégia? No sentido de nomear “o inimigo” ou abatê-lo com a arma mais evidente, isto é, com a subversão do sexo, e, assim, dar uma colher de chá para uma reação pra lá de óbvia. Sei lá, isso me parece imolação em praça pública, me lembra a histeria de Mishima. O que pensa a respeito? A propósito de “Teorema” ainda: você acredita que o sexo – hoje em dia – ainda pode ser subversivo?

Não me lembro muito bem do Teorema. Acho Pasolini, junto com Sartre, talvez o intelectual mais importante do século XX. Mas ele pode ter cometido erros, claro.

Quanto ao sexo, não sei se é subversivo. O amor, porém, tenho certeza que é. Otávio Paz, aliás, tem algumas páginas belíssimas sobre isso onde ele diz que todo amor é marginal, portanto subversivo, na medida em que o que a sociedade referenda não é o amor, mas o matrimônio.

Falta cultura? Será que foi a tecnologia que empobreceu o discurso da garotada? Esse empobrecimento (opinião minha ...) se estende para o cinema, o jornalismo, o corpo das mulheres, os filhos da Elis Regina, e até na maneira como o jogador de futebol bate na bola, o que você pensa disso?

Com exceção do corpo das mulheres (que ainda não me deixa totalmente indiferente) e dos filhos da Elis Regina (que não conheço), no resto concordo com você. As pessoas ficaram mais simplórias, mais rasas. O que se vai fazer? É um pouco difícil prover educação sofisticada para seis bilhões de pessoas.

Tô falando do corpo musculoso dessas mulheres de academia.... que mais me parecem uma linha de montagem da GM. Você toparia ouvir os filhos cantores da Elis Regina. Posso lhe arrumar um CD do Pedro Mariano. Você ouviria, e depois me daria uma opinião?

Não, não se dê a esse trabalho. Por enquanto vou continuar me privando da experiência estética de ouvir Pedro Mariano. Quanto às mulheres de academia, já não posso ser tão firme. Num período de grande escassez, sob certas circunstâncias, sei lá....

Falando em jogador de futebol, uma vez o dramaturgo Mário Bortolotto me disse o seguinte: “A gente que ver bandido na seleção” O que você acha de jogador pagar dízimo para pastores picaretas condenados pela justiça?

Quanto mais bandido, mais eu gosto. Não precisa nem ganhar. A minha seleção favorita é a de 82, que tinha Junior, Leandro, Sócrates, Serginho Chulapa e Éder. Alguns desses eram capazes de tomar o dízimo do pastor...

Por onde andará Serginho Chulapa? Você tem notícia? Aquela bicuda no Leão está registrada na minha memória afetiva. Sei que é intromissão da minha parte (quando algum gaiato dá palpite nas minhas coisas, geralmente ignoro), mas mesmo assim, vou palpitar: gostaria de ver essa bicuda registrada num filme seu. Por acaso já pensou em registrar isso num filme mezzo ficção, mezzo documentário? O futebol ainda tem espaço pra molecagem? E o Zico, que era dessa seleção maravilhosa, porque quando a gente lembra da seleção de 82, não cita o Zico? Eu, por exemplo, só lembro dele quando perdeu o pênalti em 86 ... será que é influência do Romário?

Chulapa, até pouco tempo atrás, era assistente de Luxemburgo no Santos. Acho difícil que ele continue lá depois da chegada do Leão. Acredito que o Leão, como você, também se lembre da bicuda. Aliás, você não vai ver a bicuda em nenhum filme meu porque simplesmente não pretendo fazer mais nenhum filme sobre futebol. Sim, o Zico era um grande craque e está virando um grande técnico lá na Turquia.

Você viu “Diários de Motocicleta” de Walter Salles?

Não vi. Vou pouco a cinema.

Caso tenha visto: não acha que o diretor – talvez por má consciência... – adocicou o jovem Che? Caso não tenha visto, pergunto mesmo assim: Não é estranho justamente o herdeiro do Unibanco contar a história de Guevara? Será que Walter Salles acreditou nas “verdades” do livro? Por que ele teria omitido o olhar de sangue do futuro assassino Che? Teria sido por consciência social? Ou por afinidade? Talvez a mesma afinidade que o irmão dele, o também lírico, e também cineasta, Joãozinho Salles, teve com o mordomo?

Como te disse, não vi o filme. Também não quero influir na tua maneira de enxergar o Walter Salles. Apenas lembro que o melhor jeito é olhar para o filme sem pensar no diretor. Ver o que está na tela. Se a gente vai misturar a figura e a biografia do diretor com o filme, as coisas podem ficar complicadas. Biografias são, às vezes, pistas falsas. Lembre-se que Visconti, filiado ao PCI, que fez filmes tão engajados como La terra trema, pertencia a uma família dona de Milão desde o século XI.

O problema é que é quase impossível dissociar o banqueiro do cineasta, no caso dos Irmãos Salles, não consigo. Faço isso por birra mesmo, talvez inspirado no pontapé de Serginho Chulapa. Mas essa birra não é gratuita, confesso: lembro que Joãozinho Salles deu uma entrevista na ocasião em que filmava a vida de um traficante, acho que era Marcinho VP (algo assim), se não me engano o nome do filme era “Notícias de uma Guerra Particular”. Pois bem, em dado momento , Salles solta algo mais ou menos assim: “Marcinho tem uma centelha de humanidade, por isso estou dando uma bolsa pra ele escrever um livro”. Naquela época eu estava numa merda federal (aliás, continuo), e escrevia meu “Azul do Filho Morto”. E o banqueiro sustentava um traficante foragido da Justiça, se não me engano, Marcinho VP vivia na Argentina. Cadê o livro do traficante? Pra isso que o Unibanco cobra os juros que cobra? Por que eles – e nem ninguém na imprensa – não tratam do assunto? O que há de errado com essa atividade? Que eu saiba, Visconti nunca renegou sua condição de príncipe. Vejo esses caras como aqueles ricaços que usam calça rasgada para dar uma pinta de maloqueiro, entende?. Tem um cinismo e um deboche nisso, e isso se reflete nos “Diários de Motocicleta” claramente. Posso lhe arrumar o filme, você está interessado em enfrentar essa maratona: filhos de Elis, e Waltinho Salles?

Agradeço você continuar se esforçando para aprimorar minha precária cultura, mas, novamente, prefiro declinar seu amável oferecimento.

Sabia que os colegas banqueiros de Walter Salles têm consciência social, e agora trabalham para a salvação do Planeta? Não é comovente? Nem parece banco... Parece o quê, Ugo? Cinema? Sabe quem é a próxima vítima do Mauricinho Lírico? “On The Road”, de Jack Kerouac. Eu aposto que ele vai estragar o livro. Geralmente é o que acontece, concorda?

Será que o Sindicato dos Bancários é também uma força auxiliar nessa tarefa? Concordo. Por outro lado, não gosto nem um pouco do livro. Não acho Kerouac um grande escritor. Talvez seja uma grande personalidade, mas escritor, não.

Você viu o que o “cineasta” Pedro Bial fez com Guimarães Rosa? Eu defendo a pena de morte nesse caso, e você?

Sou por uma pena mais leve. No caso, decorar o Grande Sertão de cabo a rabo e declamar um trecho na abertura e no fechamento de cada episódio do Big Brother. Sem mechandising.

Por que não tem pizza no Rio de Janeiro? Digo essas disk de 13 reais, forno à lenha... Será que a massa não cresce por lá? O carioca prefere sair de casa, ir pros butecos...é isso?

Prefere. Deve-se ao carioca a sobrevivência dos botecos. Graças a Deus.

* Considerado uma das grandes revelações da literatura brasileira dos anos 1990, formou-se em Direito, mas jamais exerceu a profissão. É conhecido pelo estilo inovador e pela ousadia, e em muitos casos virulência, com que se insurge contra o status quo e as panelinhas do mundo literário. É autor de Proibidão (Editora Demônio Negro), O herói devolvido, Bangalô e O azul do filho morto (os três pela Editora 34) e Joana a contragosto (Record), entre outros.

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