Coluna do Mirisola

O gorila agônico

“É só uma questão de tempo, de pouco tempo, para os gorilões despencarem do alto da torre e virarem qualquer coisa, virarem JB”

Marcelo Mirisola
Os pães, e o jornal debaixo do braço. Era de lei: na volta da padaria passava no jornaleiro e trazia as notícias e os pães quentes para casa. A pergunta é: há quanto tempo você não passa no jornaleiro? Ou: há quanto tempo você não acorda, abre a porta de sua casa e depara com o jornal esperando para ser lido, antes mesmo de dar tempo de passar manteiga no pão?

O que vai matar os jornais impressos é a falta de hábito. Difícil vai ser acabar com o pão quente.

Vocês perceberam como os jornais perderam o viço, perderam o encanto?

As notícias têm outros endereços, e a urgência e a novidade dos jornais encontram-se em qualquer outro lugar. Difícil é encontrar pão quente na farmácia. Há coisa de vinte anos, você acordava ansioso pra ver o que o Paulo Francis havia escrito na Folha. Era o endereço dele. Em nenhum outro lugar você o encontraria, a não ser que vocês frequentassem a mesma padaria. Era o endereço da Marilena Chauí também, que se atravaca ferozmente com o jornalista.

Percebem como ela está quieta? A filósofa se diverte em sua caverna.

Não é nem pelo desaparecimento de Paulo Francis, o que não faltam são genéricos. Nem pela palidez e a falta de charme dos colunistas de hoje, a questão é que o palpite (ou a chatice) deles está em todos os lugares: no seu celular, no google, nos blogues, nas mesas redondas da tevê, na Casa do Saber, no Itaú Cultural, na Flip, no facebook, no tuiter e – por acaso – os encontramos nos jornais impressos e nas revistas semanais.

Tem o ouro quem paradoxalmente se manifesta o mínimo necessário. Marilena Chauí ganha de W.O.

O jornal impresso, hoje, é um ente tão esotérico como o ceguinho do realejo. E o leitor de jornal um excêntrico, como o aposentado que frequenta sebos, não sabe ligar o computador e nunca vai ouvir falar de um treco chamado “estante virtual”.

Certamente para os apaixonados do Largo da Liberdade, o ceguinho do realejo é mais necessário do que qualquer jornal impresso, pois ele exerce a função primordial de informar quem o procura, e só pode ser substituído por outro ceguinho do realejo. O nome disso é exclusividade. Tem, portanto, razão de existir.

Ah, e se depender do simpático periquitinho que é seu funcionário, o futuro está garantido. Vez ou outra, quando leio os jornais a partir do meu celular, encontro algum colunista furioso defendendo a qualidade da informação na empresa onde trabalha, e atacando o lixo que circula pela rede.

Ora, as entrevistas que eles publicam com políticos mentirosos, o destaque que dão a celebridades instantâneas, o horóscopo, os editoriais que defendem a tradição, a família e a propriedade, os ataques histéricos dos leitores pedindo providências e reclamando dos buracos na rua, o carnaval de todo ano, as brigas na apuração das escolas de samba, a Preta Gil e a Ivete Sangalo sacudindo as banhas e os silicones nas colunas sociais, a página de esportes, o corte de cabelo do Neymar e as fotografias de gol … afinal, os jornais de cabo a rabo, no que diferem do lixo que circula pela internet?

Outra coisa. Independentemente do fator Zuckerberg, aqui, no Brasil temos o fator Lula. Depois que o peão derrotou toda a “informação de qualidade” que era veiculada contra ele, os grandes jornais e as revistas consumidas nos quiosques do Clube Paulistano, perderam não só o lugar de excelência e exclusividade, perderam não somente o posto de observação privilegiado, mas perderam sobretudo mira,munição e credibilidade. Quer dizer: não perderam a credibilidade nos quiosques, lá a vida do lado de fora e a constituição não existem. Perderam a credibilidade do inimigo.

Aí é que mora o perigo. Aí, nessa conjunção de Zuckerberg + Lula, é que pode ter acontecido o golpe de misericódia. A grande notícia do século XXI vai ser dada pelo Brasil, quem diria…  Os anunciantes não são tontos, nem eles, nem madame Chauí, que permanece calada.

E nessa rinha não importa quem está a favor da verdade ou quem trabalha para a mentira. Do ponto de vista da pulverização da informação – como demonstrei acima – se Lula é um estadista ou um gângster, se Zuckerberg é um gênio, ou um nerd sortudo, isso é irrelevante.

Não adianta nada estrilar, agora é tarde. Não adianta bater no peito feito um King Kong, e dizer: “Temos conteúdo, temos qualidade de informação”. Porque a informação está voando ao redor, feito os aviõezinhos que bombardeavam o gorila do Empire State Building. E o mais interessante: esses aviões-mosquitos não defendem nenhum patrão. Simplesmente atordoam o gigante, e o confundem com sua infâmia mezzo pão quente a todo instante e uma suposta “falta de qualidade”. A propósito: um Pascotto no facebook vale por mil José Simões e pelo “conteúdo” de todos os “articulistas” da ilustrada juntos, menos os quadrinhos e o Cony. Portanto, essa falta de qualidade é algo bem discutível.

Nem vale a pena falar do medieval Estado de São Paulo que demitiu Maria Rita Kehl por delito de opinião. Não bastasse a foice do tempo, os caras ainda fazem questão de atirar no próprio pé. Vai chegar um dia que a Veja circulará apenas nos quiosques dos clubes Paulistano, Harmonia e Pinheiros. De modo que não é absurdo dizer que um grande sustentáculo do quarto poder está em vias de extinção, seus alicerces estão comprometidos e corroídos a partir de dentro. E a ameaça mais grave não vem de governos autoritários, mas do endereço e da identidade que perderam, do cep que não existe mais.

O gigante perdeu o lugar no mundo, e só lhe resta o grito agônico do alto da torre, um urro ignóbil pela liberdade de ser redundante, ou seja, de gritar (ou informar, tanto faz) que ele está morrendo.

A questão é: o que faz um bicho desse tamanho pendurado no edifício mais alto da cidade senão atrapalhar a rotina de quem vai à padaria comprar pão quente? Eis a palavra crucial: rotina, sinônimo inflexível de hábito. Era disso que viviam os jornais e os veículos impressos no século passado. Dançaram.

A selva de Gutemberg, agora é a selva de Zuckerberg. O que era impresso era verdade. Às vezes valia mais do que a lei. E o tesouro mais precioso do quarto poder (o endereço ), aqui, na grande cidade virtual, é apenas um grito no meio de milhares de outros gritos. É só uma questão de tempo, de pouco tempo, para os gorilões despencarem do alto da torre e virarem qualquer coisa, virarem JB.

Publicado originalmente no "congressoemfoco"

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