Sociedade

Drogas de vida

João Pereira Coutinho (original aqui)
Leio na imprensa brasileira que Fernando Henrique Cardoso fez um "mea culpa". No documentário "Quebrando o Tabu", dirigido por Fernando Grostein Andrade, o ex-presidente junta-se a outros chefes de Estado e todos admitem em coro: a guerra contra as drogas falhou.

Ou, pelo menos, a guerra contra o uso de drogas. Descriminalizar é a palavra: o drogado é um doente, não um criminoso. Ele deve ser tratado, não punido.

Aplaudo Fernando Henrique Cardoso. Aplaudo e lamento que o ex-presidente não tenha ido um pouco mais longe.

Por que motivo devemos descriminalizar o consumo e continuar uma guerra perpétua contra a produção e a venda? Não serão os ganhos de um lado destruídos pelas perdas no outro? No fundo, de que vale descriminalizar o consumo quando o "fruto proibido" continua a ser um convite para a marginalidade e o crime?

Existem várias respostas para esse dilema. Todas elas confluem no mesmo ponto: a liberação da produção e da venda, ao "normalizar" ainda mais as drogas em sociedade e ao permitir uma quebra dos preços pela disrupção do tráfico, aumentaria o consumo.

Admito que seja verdade. Mas também admito que não seja verdade: se amanhã, por absurdo exemplo, o poder político proclamasse a "normalidade" do bestialismo, duvido que toda gente desatasse a transar, ou a casar, com porcos e galinhas.

"Se não conseguimos acabar com as drogas dentro de uma prisão de segurança máxima, como podemos acabar com elas em uma sociedade livre?"
Fernando Henrique Cardoso

E, sobre quebra de preços, relembro: a liberação da produção e da venda far-se-ia sob a alçada da lei. E um Estado que pune fiscalmente o consumo de álcool ou de tabaco poderia tratar da droga com igual ou superior dureza. E, já agora, com uma vigilância sobre a qualidade do produto que não existe no mercado negro.

Acontece que o meu argumento a favor da liberação das drogas não é social ou económico. É, digamos, filosófico. Porque o problema das drogas não são as drogas. São os seres humanos. De igual forma, as drogas não têm solução porque os seres humanos também não.

Sim, vivemos num tempo pós-moderninho, que desconfia das certezas racionais (e absolutas) do projeto iluminista.

Mas, apesar de tudo, persiste ainda a idéia progressista de que os homens podem ser mais do que são: mais perfeitos; mais controladores do seu destino; mais senhores da sua alma.

Pouco interessa que os últimos 200 anos sejam a prova empírica e dolorosa de que as utopias sociais e políticas são uma imensa sepultura. Se desistirmos de procurar a perfeição terrena, pensam os políticos, isso não será apenas uma derrota dolorosa. Será um suicídio civilizacional.

É por isso que a "guerra às drogas" não pode parar e John Gray, um filósofo com quem mantenho uma interessante relação de amor/ódio, é o único pensador contemporâneo que tem escrito obsessivamente sobre o assunto.

Gray, felizmente, tem sido publicado no Brasil pela Record - e o seu "A Anatomia de John Gray" é um resumo poderoso da sua evolução como pensador iconoclasta.

Mas é num livro anterior a "Anatomia", intitulado "Cachorros de Palha" e composto por aforismos dignos de um Cioran, que Gray escreve sobre a necessidade de alienação pessoal que existe em todas as culturas, em todas as sociedades e em todos os tempos.

É precisamente essa necessidade de alienação que perturba o poder político. A produção de drogas e o seu consumo é uma confissão de impotência e de imperfeição humanas. Sociedades progressistas não podem admitir semelhante coisa. Não podem admitir, no fundo, "a infelicidade normal da vida", escreve Gray. E a necessidade de uma indústria que a alivie.

Fernando Henrique é um político. Ideologicamente, continua a ser um herdeiro da tradição progressista. É por isso que ele tolera que o consumidor seja um "doente", a precisar de "tratamento", ou seja, de "correção" humana - o supremo sonho do projeto iluminista.

Mas Fernando Henrique não tolera, nem pode tolerar, que existam no mundo portas de saída existenciais capazes de aliviar "a dor da consciência", para usar a expressão do poeta e cientista e consumidor Eugene Marais.

E, no entanto, essa "dor da consciência" vai permanecer. Como sempre permaneceu entre nós. E nem todos os exércitos do mundo vão alterar a guerra invisível que é travada dentro da alma humana.

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