Opinião

A morada do diabo

Alexandre Schwartsman
Ainda em sua primeira versão, a mesma que causou (justificado) escândalo em agosto do ano passado, o Orçamento federal previa deficit de R$ 30 bilhões, rapidamente transformado em superavit de R$ 24 bilhões, embora, é claro, apenas no papel. Tanto que a administração anterior já reconhecia que o número seria negativo e bem pior do que as primeiras estimativas, na casa de R$ 100 bilhões.

Ainda assim, quem segue a questão fiscal de perto já havia manifestado sua descrença, apostando num buraco ainda maior, e valores na casa de R$ 150 bilhões não chegavam a escandalizar ninguém, uma triste ilustração de como nos adaptamos facilmente à miséria. Nesse sentido, o anúncio de um deficit de R$ 170 bilhões, equivalente a 2,7% do PIB, foi recebido por uma sociedade anestesiada.

Não há dúvida de que o valor é horroroso e retrato do grau de deterioração das contas do governo nos últimos anos. Contudo, não chega a ser o pior desenvolvimento nessa frente: o que me deixa ainda mais horrorizado é o grau de incerteza que existe em torno dos números fiscais.

Não bastassem as repetidas revisões de metas (fenômeno constante nos últimos anos), há ainda a possibilidade de perdas de montante desconhecido associadas a eventos tão distintos como a necessidade de capitalização da Petrobras, ou a incapacidade da Eletrobras em publicar seu balanço auditado segundo regras internacionais, ou ainda o montante de créditos de má qualidade nos bancos federais e seus impactos sobre as finanças públicas.

É lamentável, mas aprendemos como um governo mal-intencionado e/ou incompetente na gestão fiscal pode causar um estrago sem precedentes. O quadro institucional, expresso em diplomas como a Lei de Responsabilidade Fiscal ou a Lei de Diretrizes Orçamentárias, foi simplesmente despedaçado no processo. Recuamos ao menos 20 anos em termos de instituições fiscais. Idealmente essas deveriam ser reconstruídas, mas não temos sequer certeza de que seremos capazes de tal tarefa.

Sob essa ótica, as medidas anunciadas nesta terça (24) são, em sua maioria, uma manifestação de intenções corretas, mas, para falar a verdade, não muito mais que isso.

Dessas, a antecipação de pagamentos por parte do BNDES para o Tesouro Nacional é a que deve produzir o maior impacto, R$ 100 bilhões. Da mesma forma, porém, que a concessão dos empréstimos não é despesa, sua amortização não é receita. Embora muito inferior ao tamanho da dívida (R$ 4 trilhões, ou 67% do PIB em março), o efeito equivale a algo como 1,7% do PIB e pode reduzir a conta de juros em algo como R$ 7 bilhões/ano.

Já a fixação de um teto para as despesas do governo federal de acordo com a inflação antecipa uma queda destas relativamente ao PIB. No entanto, sem medidas mais claras no que se refere às vinculações e à adequação da Previdência, não é claro como o teto será cumprido. O diabo mora nos detalhes e resta, portanto, saber como, na emenda constitucional sobre o tema, o governo pretende lidar com essa questão.

Segundo Alexandre Pombini, "a inflação em si jamais fugiu ao controle nesses 17 anos do regime de metas". O grau de alienação dessa afirmação revela por que a inflação atingiu mais de 6% ao ano entre 2011 e 2014, 10,7% em 2015 e 9,6% nos últimos 12 meses, comparada a uma meta de 4,5%. Já vai tarde... 

Original aqui

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