Opinião

Um conto erótico e perverso

“Foi só levantar a cabeça e lá estava o sujeito na minha frente, implorando para puxar a cadeira. Concordei. E desse momento em diante estabeleceu-se o reino de Satanás e suas falanges, engrenando uma quarta ladeira da misericórdia abaixo e adio, mamma, abia misericordia di nuoi”

Márcia Denser


Em sua última coluna de 2012, Márcia Denser brinda seus leitores com uma leitura de ficção, o seu conto Relatório Final. Considerado pela crítica no Brasil e nos Estados Unidos como uma das obras-primas do conto pós-moderno brasileiro, o texto mescla, em altíssima temperatura, erotismo e perversidade. Relatório Final foi publicado em Diana Caçadora/Tango Fantasma (S. Paulo, Ateliê Editorial, 2003-2009, 2ª edição) e incluído na recém-lançada antologia 50 Versões de Amor e Paz, organizado por Reinaldo de Fernandes (S. Paulo, Geração Editorial, 2012). Prende da primeira à última linha e vence o leitor por nocaute.

Relatório Final

“Recordo só um dia que talvez nunca me foi destinado,
era um dia incessante, sem origens.”

Pablo Neruda

Assim eu pretendo começar a contar a história toda como uma espécie de relatório dos fatos ocorridos no dia e na noite de 30 de dezembro e talvez lhes dê o nome de antevéspera, pois foi a palavra que me ocorreu quando atravessava a praça naquela manhã, pensando que o melhor da festa é sempre a sua antevéspera e que havia lido algum conto com esse nome e que o fim do ano prometia muito mais na antevéspera, dia 30.

Consolo-me unicamente por saber que esta vai ser a abertura do meu livro e que não será o fim de coisa alguma, um ano, talvez, quando então já começava a morrer num carrossel que iniciou a girar em meados do ano passado e deu a sua última volta precisamente no dia 30 de dezembro deste ano, às 23 horas e alguns minutos, no poço escuro de outra praça a quinhentos metros desta e jamais poderia adivinhar, a menos que as coisas ainda não estivessem suficientemente claras para uma criatura inconsciente como eu, naquela manhã do dia 30, como um automóvel promovendo a última arrancada antes da reta final que, possivelmente, fosse o abismo, não havendo nenhum prêmio para o vencedor, salvo este saltasse a tempo.

Eu fiquei. Mas as coisas não são tão simples. Posso até dizer o momento em que ambos caímos, ou ele caiu, não posso precisar, quem quis realmente ficar fui eu, ele não teve escolha – é uma questão mecânica, física, matemática.

Quanto a mim, equação indisposta, era por mero acaso que me encontrava lá dentro e por mero acaso agora estou catando esses cacos, tentando recompor as peças desse quebra-cabeça chamado literatura, esse jogo sujo com o qual tento abafar meu grito anterior, tapando os ouvidos e gritando junto, botando compressas sobre a ferida enorme aberta sem piedade ou contemplação, nadando nesse mar de restos, emergindo às vezes para respirar mais merda sob a noite da praça, um poço escuro sem nenhuma atmosfera. Permaneço ali (ou aqui) tentando balbuciar fiat lux, não é?

É mais ou menos isso. O medo é o sentimento mais coletivo que existe e estou com medo.

Mas a única coisa que realmente importa é que vou começar a contar os fatos ocorridos no dia 30 de dezembro, tentando ainda me agarrar numa prosa de relatório, quando muito mais fácil e cruel seria tatear metáforas, abrir-lhes as coxas e, paradoxalmente, descobrir que as desejo e sinto um terror ancestral por elas e todas as vezes que eu estiver mentindo botarei a cabeça no meio delas e dormirei profundamente.

Enfim, ainda estou tentando a forma mais indolor de contar – para mim e para os outros – porque a dor de um filho já não é mais a nossa, a pele cortada é outra e assim podemos, no quinto degrau do anfiteatro, observar atentamente essa cirurgia. E tudo isso quer dizer literatura: a requintada crueldade de poder observar as próprias vísceras expostas refletidas no espelho e imaginando não ser as nossas, como se este refletisse toda a humanidade agora, a desumanidade estará dentro de nós como o olho cego da câmara fotográfica, as lâminas frias da cortina que fecha e abre a objetiva, o vidro da lente, inopinadamente a sangrar, a sangrar, amigos, a sangrar, o fluxo maldito chamado literatura, a sangrar…

Optarei sempre e de qualquer forma pelo caminho mais fácil que é o de remexer minhas entranhas, alisar a ferida, morrendo como morro de medo dos outros, enfiar a mão nas gangrenas alheias a ponto de saber que se confundem com as minhas e a dor dos outros então me doerá tanto, ao limite do insuportável, que então será preciso me matar e pronto e chega.

Eu não sei também até que ponto fiz mal àquele que não tem rosto e não tem nome (tem, mas não posso dizê-lo, não tenho direito algum a ele), aquele que encontrei às dezesseis e vinte do dia 30 de dezembro e teve o incrível mau gosto de se sentar à mesa de quem já estava suficientemente bêbada a ponto de não recusar nem o Nosferatu por companhia.

Pela cabeça dele (ou por seu coração) deve ter passado tudo isso, mas ele não podia sequer se dar conta até onde eu o levaria, se o carregaria para o fundo do abismo ou ao menos tentaria, ele, que ficou lá embaixo (ou lá em cima), me observando cheio de terror e pena e nojo.

Que se despediu de mim assustado, dizendo morar em Osasco e mais longe gostaria de estar, talvez naquela cidade do interior de onde nunca deveria ter saído: eu bem que disse a ele, no bar, olhando sua camisa listrada azul-celeste, suas abotoaduras de cristal, eu disse que ele deveria ter ficado por lá, olhando para o uísque nacional passando do fundo do copo para dentro da sua garganta caipira de gogó saliente e o bigode grosseiro, o paletó axadrezado verde e branco e repeti você nunca deveria ter saído da tua cidade, cara, e depois, enquanto eu comia um peixe requentado, a massa de tomate rançosa e ácida furando-me o esôfago, você disse que eu sabia pedir e tinha gosto e também porque eu estava bebendo um bom vinho rosado e eu olhei de novo para você e tive vontade de te mandar embora, olhei para aquilo que não tinha nome nem rosto, olhei para a camisa, as abotoaduras, o uísque fajuto e então insisti pela última vez pra você dar o fora para a tua cidade do interior de onde nunca deveria ter saído, e você a pensar o quanto estava sendo esperto e se aproveitando, e você a preencher meu cheque, porque eu estava bêbada demais até para isso, com sua caligrafia de escolinha do interior, redonda e ereta, como um molequinho saído do banho, o cabelo grudado com sabonete, antes de ir para a tal escolinha do interior, e você a pensar como era vivo porque eu pagava a conta e não ia te cobrar nada depois, mas então eu notei que já era noite na cidade, estava grudando nos vidros do restaurante, noite de 30 de dezembro, oito horas de uma noite leitosa que caiu em cima de uma mulher ao lado de um homem sem rosto.

A cidade a partir deste momento desapareceu, ao mesmo tempo em que foi subindo pelos meus pés, meus joelhos, agarrando-me pelos cabelos e me afogando numa torturante ejaculação monstruosa, um ruído de motor a óleo diesel permanente na minha cabeça, mas eu não cedia, não desacordava, não morria de uma vez, vivendo debaixo de seu cheiro de merda seca fermentada, abstrata casa de máquinas ininterruptas a fabricar eternamente merda, merda, merda, a cidade turbulava em meu peito e seu coração batia junto ao meu podre descompassado implorando perdão, por favor, perdão, quando então acordei ao lado de alguém que curiosamente prosseguia sem rosto como a cidade.

Eu era uma mulher transportada ao acaso por um homem encontrado vagamente e nos despimos como para morrer ou nadar ou envelhecer, e é possível que o amor tenha caído no pó de tanta merda e não haja senão carne e ossos velozmente adorados, enquanto o fogo se consome e nossos cavalos vestidos de vermelho galopam para o inferno? Todavia foi uma só noite longa como uma veia, e entre o ácido e a paciência do tempo enrugado, transcorremos, separando as sílabas do medo e da ternura, interminavelmente exterminados.

Não me lembro se fui possuída (se essa possessão também não fosse da cidade, o monstro louco e amigo), se não sentisse depois os músculos internos das coxas doloridos. Ele deve ter feito um esforço muito grande, como penetrar um saco de batatas. Vi um corpo nu ao meu lado. Não lembro detalhes, a configuração das pernas ou dos ombros, alguma cicatriz, nem a cor da pele, nada.

Agora penso e me revolto pelo fato dele ter estado lúcido o tempo todo e de existir na sua recordação alguém frouxo e esparramado na noite de 30 de dezembro, mas ele não mencionou minha bebedeira nenhuma vez, isso eu lembro, e não entendo porque um bêbado é perfeitamente reconhecível a vinte quilômetros ou a vinte centímetros de distância e seja qual for o ângulo de visão e eu não fujo à regra e então?

Então nada. Não ia dizer nada disso. Vou tentar novamente. Nalguma parte da conversa no bar (quando então eu já me encontrava debaixo de uma grossa camada de resíduos, como um peixe espiando as pessoas através de um aquário turvo que o dono não limpasse há semanas), ele sugeriu o hotel e fofamente devo ter concordado. Posso também ter concordado depois de beber cointreau ou na rua, tropeçando num canteiro e ele me puxando pelo braço, sentindo pena e sugerindo um lugar onde esperássemos a tontura passar. Tudo isso pode ter ocorrido se eu não soubesse que não foi nada disso e ele agora está morto para responder a essas questões que me atormentam, quer dizer, a seqüência dos fatos.

Mais recentemente um amigo consolou-me dizendo que esses remorsos seriam puramente de ordem estética porque, pela descrição, o sujeito seria algo entre bancário e representante de bebidas – lembro de um pingüim em seu cartão, podia ser também um pavão, dessas impressões borradas, desses cartões ordinários, assim como todo o resto, assim como ficaram meus olhos horríveis no espelho, mas sobre a mobília do quarto falo depois.

Estava nas aves. Meu amigo é sofisticado e eu também, logo nos entendemos, então para me consolar racionalizo que tenha razão, que meus remorsos tenham sido puramente de ordem estética – eu sempre desprezei esses tipos remelentos de cidade e ele me compreende. Falta ainda dizer como cheguei àquele bar tão bêbada e que bar era aquele.

Houve uma festa na agência. O pessoal trouxe bebidas e salgadinhos e começou bem cedo a jogar papel picado pelas janelas. Às dez da manhã já estávamos alegres, fazendo chover memorandos rasgados e sem querer ainda perfeitamente legíveis, para nossa grande dor, porque não é assim que se altera a ordem do universo, não é não, Deus sabia o que estava fazendo ao lançar sua loucura no espaço e determinar que o caos se fizesse retórica bem mais tarde inventada por uns gregos malucos.

Eu e um amigo discutíamos tudo isso liquidando mais uma garrafa de uísque e a merda de mais um ano absolutamente igual aos anteriores e absolutamente igual aos que viriam (se viessem), Amos, Atos, Obros, eternamente, era inevitável, assim como mais um gole. Pelas quatro da tarde eu desci resolvida por perversos propósitos caçar alguma coisa ou alguém porque ainda estava sedenta de mais bebida e amores proibidos.

Hoje eu sei que por amores proibidos entenda-se trepar com bancários, escriturários, balconistas e picaretas adjacentes da zona azul, de preferência celeste. Eles adoram o azul-celeste. Depois vomitar bílis verde. O amor é colorido, o arco-íris estabelecido entre Deus e os homens. E estava com fome, no que deu o peixe rançoso.

Admira muito, porque naquele bar a comida costuma ser boa, é um bar tradicional com cadeiras estofadas em vermelho e garçons específicos e bebedeiras específicas, como a minha, só não era específico aquele sujeito sentado na mesa ao lado, enviando olhares azul-celestes especificamente para a dona desacompanhada. Talvez a coisa tivesse sido melhor com os três executivos ansiosos, duas mesas além à direita, também interessados na dona desacompanhada. Mas não foi assim.

Foi só levantar a cabeça e lá estava o sujeito na minha frente, implorando para puxar a cadeira. Concordei. E desse momento em diante estabeleceu-se o reino de Satanás e suas falanges, engrenando uma quarta ladeira da misericórdia abaixo e adio, mamma, abia misericordia di nuoi.

Sei que você deve ter sentido muito nojo, teve pouco tempo para isso, mas teve. O meu desprezo recendia num raio aproximado de trezentos quilômetros e nem a um molequinho do interior esse sentimento passaria despercebido e você não era um molequinho do interior, era, digamos, um representante de bebidas que foi molequinho do interior e isso faz uma grande diferença. Eu não desprezo molequinhos do interior, desprezo aquilo no que eles se transformam, é isso. Um dia casam na igreja e vão ficar assistindo ao programa do Faustão domingo à tarde e ao jogo pelo rádio e levar a mulher ao zoológico ou pra comer pizza numa pizzaria de bairro cheia de gordas e crianças e é isso. Você não era nenhum idiota. Digo era, porque agora está morto e pronto e chega.

Daí nós chegamos no hotel. Lembro bem onde fica: atrás do Hilton e no meio de boates de putas e travestis e, no mínimo, agora imagino, o único que você conhecia, porque algum travesti deve ter te levado lá num sábado de azar, só pode ter sido isto. É sempre isto. Completamente bêbada, o cara de sapo do balcão ainda pediu para eu deixar meu documento e eu deixei minha carteira de jornalista – esqueci de dizer que sou jornalista – e a jornalista e o representante de bebidas subiram umas escadas tortas e entraram num quarto.

Era grande. Tinha até cama redonda. Mas tudo dava nojo. O banheiro estava molhado, lembro disso porque uma hora fui lá e molhei os pés e molhei os pés em toda parte, estava todo alagado. E é só. Depois devo ter apagado.

Apagado, apagado, até acordar com a calcinha enrolada nas pernas e uma coisa mole do lado direito tentando falar ou fazer ou pegar ou não sei e falando de uma fonte em quintal ou varanda e dos sobrinhos e de um irmão a chegar de viagem e a coisa tentando, minhas coxas morenas e grossas e daí apaguei de novo e a coisa foi socando como um pilão e eu gemendo, socando e eu hum, socando e eu hum, hum e então fingi que acabei e a coisa parou e me deixou em paz, em paz, em paz, mas eu já tinha acordado e levantei e agora sim, me olhei no espelho e vi os olhos borrados, estavam horríveis, mas não me importei, deu uma urgência de me vestir, perguntar as horas, procurar a cinta, as meias, não sei até hoje onde achei e enfiei e como subi nos sapatos e onde calcei e de que lado vesti a blusa no avesso da saia e implorei: vamos embora. Perguntei o nome dele e ele disse mas eu não lembro, não lembro, não lembro.

Fomos saindo e o cara de sapo gritou ei, o documento! A minha carteira de jornalista e daí eu ri porque a jornalista e o representante de bebidas saíram e foram beber no bar da praça com mesinhas na calçada.

Ali, as coisas pioraram muito. Inventei que por ali tinha muitos amigos, o que é verdade, naquele bar estou sempre com meus amigos, e que o meu negócio era mulher, o que é verdade e é mentira, estava ficando muito excitada e louca, então falei em pegar uma mulher e deixei ele assanhado e ele disse eu nunca fiz isso eu topo, vamos pegar uma mulher e daí eu não, é tarde, outro dia, tem uma amiga casada que eu amo, eu amo aquela mulher, por que, você sabe, sou uma grande vaca e ele disse não eu não acho e eu repeti sou a maior vaca de todas e daí então ele me olhou duro e falou sim, que eu era uma vacona bem grande e falou mais coisas terríveis, depois teve pena de mim porque eu estava só fazendo farol porque estava excitada, só por isso, esse negócio de tesão faz a gente falar muita besteira. Bebemos dois chopes, mas eu ainda estava excitada e ele também por causa da história da mulher e não sei quem lembrou: e se a gente fosse dar uma ali no meio da praça da igreja? Fomos.

Este é o relatório dos acontecimentos do dia 30 de dezembro. Às 23h45, precisamente, porque eu olhei para a torre da igreja que tem no meio da praça, enquanto estava de bruços com a saia levantada apoiando as mãos no capim fedendo merda velha e ele por trás mole e mole e com nojo e de ver aquilo tudo sem dizer nada explicando estar machucado e eu lembro que estava louca e isso era bom mas não queria sujar as mãos na terra e queria que aquela coisa entrasse dura e rija e forte e explodisse aqui dentro e me deixasse mais louca mas ele estava mole, ele não prestava para nada,  ele era um frouxo, daí eu subi as meias, a calcinha, a cinta e catei a bolsa pendurada numa argola de ferro da igreja e falei piscando para as luzes, porque minhas lentes de contato já começam a arder nessas horas, que você era um frouxo. E fomos embora.

Ele me ajudou a pular o murinho, quieto e moreno, e falou outra vez que estava machucado mas eu sabia que era nojo, que ele era um cara cheio de preconceitos e coisas assim na cabeça, negócio de mãe e pai lá no interior e noiva e tudo isso que eu já falei e já estávamos, quer dizer, eu estava na Consolação louca para ir embora e ele perguntou se eu ia de ônibus e eu disse não, vou pegar um táxi e ele disse acho que vou para Osasco e eu pensei como Osasco? E então veio um táxi, eu fiz sinal, abri a porta e te olhei: você era só um estranho e disse tchau. Dentro do táxi fui embora imaginando você morto lá em Osasco enquanto eu moro nos Jardins e amanhã vai ter uma puta festa.

Publicado originalmente no "congressoemfoco"

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