Opinião

Quarenta

João Pereira Coutinho
Hoje é um dia de despedida. Amanhã chego aos 40 anos. Poderia ser pior.

Tudo começou no dia 1º de junho de 1976. O rapaz nasceu na clínica da avenida dos Aliados, no centro do Porto. Rezam as crônicas que o parto foi normal, "au naturel", e que o infante apareceu ao mundo com os pés de Lord Byron. Os pais, românticos por formação, agradeceram a dádiva e tentaram um compromisso: corrigir os pés e manter a cabeça de um poeta. Conseguiram.

A infância foi feliz e insensata. Não tenho memória dos primeiros três anos, mas elas abundam sobre os três seguintes. Uma casa de mulheres, uma rua de rapazes, dias longos no faroeste –real ou imaginário. Aos 6, descobri uma sala de cinema junto à casa dos avós maternos. Fiz do encontro a minha rosa púrpura do Cairo.

Tornei-me especialista em filmes série A, B e Z. Até chegar à adolescência, a minha vida está contada num certo filme de Giuseppe Tornatore sobre beijos roubados, mas nunca censurados. Se hoje vivo entre a verdade e a ficção, a culpa é do homem que matou Liberty Valance.

Não fui filho único. Quando a infância mal tinha começado, recebi uma donzela como irmã. Contra todos os manuais de psicologia, nunca houve tentativas de assassinato. Para que matar quando era mais divertido torturar? Isso nas horas vagas, claro. Nas restantes, era como certos animais de estimação que velam dia e noite, enternecidos, pelo seu dono tão amado.

A leitura começou cedo. Investiguei crimes na Londres de Sherlock Holmes. Entrei em armários com C.S. Lewis para encontrar uma terra onde havia sempre neve e nunca era Natal. E, aos 12, o meu pai sugeriu-me Eça. "Escolhe um livro", disse ele. Semanas depois, quis saber se tinha gostado. Disse que sim. "Que livro leste?", perguntou. "Todos", respondi.

Era um caminho sem retorno. E, para não variar, o vício da leitura levou ao vício da escrita. Tinha 16 anos quando bati as primeiras linhas públicas; 19 quando fui condenado por abuso de liberdade de imprensa; 20 quando publiquei o primeiro livro; e 21 quando chegou o esgotamento nervoso.

Minto. Quando me perguntam como foi possível fazer tanto desde tão cedo, respondo com uma palavra improvável: ócio. Ninguém acredita, talvez porque "ócio" seja confundido com a mais reles "preguiça". Mas foi o gosto pelo ócio que embalou tudo o que fiz com a sensação leve e alegre de que nada estava a fazer.

Pensando bem, devo ao ócio o melhor de mim. Amei várias mulheres pelo simples prazer de as amar. Perdi-me nas cidades da minha vida –Londres, Nápoles, até São Paulo– pelo simples prazer de me perder. E, politicamente falando, poderia argumentar que sempre fui um conservador liberal porque li os autores certos na idade certa.

Tudo mentira. É o ócio que sempre alimentou em mim uma desconfiança imediata pelos "engenheiros das almas humanas". A minha bíblia política pode ser encontrada na porta de qualquer quarto de hotel: "Não perturbar". E, quando as circunstâncias assim o exigem, é só virar o papel: "Favor arrumar o quarto."

Assim chego aos 40: depois de ter aprendido, a penas duras, que não há nada mais importante do que perder todo o medo e toda a esperança.

Não falo das pequenas esperanças que devem preencher qualquer vida: escrever os livros que ainda só existem na estante da minha cabeça; partilhar os dias e as noites com a minha senhora; ver o rosto da minha mãe a envelhecer sem drama e com humor; conversar e rir e beber com os melhores amigos; acompanhar o crescimento do meu filho e deixar-lhe o mesmo conselho que Alexander Waugh, neto de Evelyn e filho de Auberon, deixou ao seu: "Suspeita sempre da seriedade; ela é uma forma de estupidez".

Quando falo em "perder a esperança", sou estoico até o tutano. Trata-se simplesmente de nunca viver no futuro quando é o presente que está presente. E isso basta. Porque já bastou o que bastou.

Rezam as crônicas que no dia 1º de junho de 1976 o rapaz nasceu na clínica da avenida dos Aliados, no Porto. Hoje, o rapaz regressa ao mesmo lugar e descobre que a clínica já não existe: é um prédio vazio e degradado. "Mas por pouco tempo", dizem-me nas lojas da vizinhança. Parece que em breve será um hotel com um bar bem fornecido.

Sorrio com a evolução do espaço –quem disse que Deus não tem sentido de humor?– e murmuro, para ninguém escutar: "Obrigado, gente. Mas não era preciso tanto". 

Original aqui

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Mosca-dragão

Pegoava?

Jundu