Opinião

Tenho saudades dos velhos suicidas quando vejo os terroristas de hoje

João Pereira Coutinho
Acordo. Ligo a TV. E espero para ver onde foi o último atentado. Atenção aos termos: não é saber se houve atentado; é saber onde.

Essas palavras não são minhas. Pertencem a um colega israelense, alguns anos atrás. Quando escutava o que ele dizia, sentia compaixão e alívio. A Europa, a minha Europa, não tinha essas contabilidades mórbidas. Havia problemas: crises financeiras ou políticas, crimes pontuais e passionais, tudo assuntos de Primeiro Mundo. Mas bombistas-suicidas? Alucinados que abrem fogo em restaurantes ou shoppings?

Impensável. Claro que Londres sofrera um ataque em 2005. E Madrid, no ano anterior. Mas eram ataques isolados, monstruosos, quase lendários. Não havia a cadência da morte com o café da manhã.

Esse mundo está a ruir. Antes de escrever essa coluna, tentei contabilizar os crimes aleatórios cometidos nos últimos 10 ou 15 dias. Houve Nice, houve Munique, houve a igreja da Normandia. Mas também houve mãe e filhas esfaqueadas nos Alpes (estavam "pouco vestidas", disse o alienado). E um sírio que se fez explodir na Baviera. E um alemão no sul da Alemanha com um machado. E um....

Parei a contagem. Não por ela ser brutal. Mas porque pode haver algum esquecimento imperdoável.

Os atentados correntes na Europa parecem ser de dois tipos: atos de terror cometidos contra uma sociedade que se percepciona como opressora, cruel, injusta. E atentados religiosos, em nome do radicalismo islamita, como aconteceu com o padre degolado em Rouen.

Em relação aos primeiros, confesso: tenho saudades dos velhos suicidas quando vejo os terroristas de hoje. Durkheim explica. Em finais do século 19, o indivíduo alienado terminava com a vida no anonimato (ou, para usar a terminologia do autor, de forma "egoísta" ou "anómica"). Sozinho, sem ligações sociais ou afectivas, desprezado pela sociedade, usualmente na pobreza, havia sempre uma corda para pendurar a infelicidade.

Há algo de estóico no gesto. E de adulto também: uma forma de autonomia existencial em que o sujeito não atribui aos outros o seu próprio naufrágio. Lamentamos, mas compreendemos.

Nada que se compare aos homicidas e suicidas que se formaram e deformaram na escola do ressentimento. Eles sabem que vão morrer; estão preparados para isso. Mas a matança alheia é uma forma perversa de continuarem vivos após a aniquilação pessoal que tanto desejam. O mundo ignorou-me em vida; não irá ignorar-me na morte, parecem dizer os criminosos.

O radicalismo islamita é outra história. Ou, diria o mestre, uma forma de suicídio "altruísta", cometido em nome de uma causa. E o padre degolado no altar de uma igreja ganha outros contornos. Não apenas pela encenação sacrílega do crime. Mas porque a Europa parece estar a importar o pior do Oriente Médio e de África, onde os "mártires da fé" crescem de ano para ano.

Sim, quando lemos os textos dos débeis, há sempre um "idiota útil" que alerta para os perigos da "islamofobia". Como se os muçulmanos europeus estivessem a ser vítimas de genocídio.

Não estão. Essa gentileza é reservada para os cristãos - o grupo religioso mais perseguido do mundo, sobretudo onde o radicalismo islamita impera. Segundo o Pew Research Center, são 100 mil mortes por ano.

Onde estão os 100 mil muçulmanos mortos - por cristãos, pela extrema-direita, pelo Rato Mickey - todos os anos na Europa? Onde estão os muçulmanos crucificados como acontece aos cristãos no território controlado pelo Daesh? Os "idiotas úteis" poderiam responder, caso fossem dotados de racionalidade.

Acordo. Ligo a tv. E espero para ver onde foi o último atentado. Atenção aos termos: não é saber se houve atentado; é saber onde.

Essas palavras, agora, são minhas.

*

Um pouco de nostalgia: quando era adolescente, tive três paixões fulminantes por três brasileiras. Você quer nomes? Seja. Luiza Tomé, Débora Bloch e Taís Araújo. Nunca conheci nenhuma delas.

Mas, certo dia, avistei a última. No Rio. Taís passou —cabelo farto, perfeição de formas, uns olhos belamente desenhados em rosto que levaria qualquer homem a lutar contra Tróia— e eu só não caí de joelhos porque estava com companhias ilustres.

Pena. Existe uma sequência do filme "A Grande Beleza", do insuportável Paolo Sorrentino, que vale o filme todo. Acontece quando Jep, o "flâneur", caminha pelas ruas de Roma, perdido e melancólico. Fanny Ardant, a actriz, passa por ele. Jep sorri, diz qualquer coisa como "Madame Ardant" e ela devolve o sorriso. Ambos continuam o seu passeio em direcções opostas.

Entendo Jep. Há momentos nos nossos dias rotineiros e anónimos em que a beleza é como uma iluminação súbita que redime a tristeza inteira. Dizem que isso piora com a idade. Confirmo.

E se lembro Taís Araújo é por dois motivos singelos. Primeiro, porque gosto sempre de me lembrar dela. E, depois, porque li algures que a cantora Paula Lima foi alvo de comentários racistas na internet exactamente como Taís Araújo no passado.

Aliás, para sermos rigorosos, a lista de cantoras, actrizes, jornalistas, modelos e outras profissionais vítimas de insultos é assaz generosa. Soa estranho. Racismo no Brasil, um país que os meus antepassados miscigenaram com vigor (em vários sentidos da palavra "vigor") deveria ser tão estranho como esquimós nas Bahamas.

Mas também sei que esse bilhete postal ilustrado é um clichê para turista ver. O racismo continua a ser moeda corrente no país - e isso é visível nas relações de classe. Os meus amigos anti-marxistas que me desculpem, mas eles precisam conhecer melhor o Brasil.

Acontece que, nos casos citados, os selvagens não atacam apenas a cor da pele. Todos os alvos, sem excepção, são mulheres incrivelmente belas e, claro, exemplos de sucesso. A cor da pele é secundária (no mínimo) ou a razão principal para tanta beleza (opinião pessoal). Não quero com isso dizer que a feiúra seria um atenuante. Apenas afirmo que insultar a beleza física de alguém com ofensas físicas revela algo mais.

Nos casos conhecidos, as senhoras atacadas recorreram à justiça, É uma opção, embora seja humanamente impossível punir a quantidade infinita de retardados que existem na internet.

Outra opção seria criar uma ONG para ajudar cada um desses selvagens a lidarem melhor com a sua própria vida íntima. Quando lemos os insultos, é impossível não pressentir por trás daquelas palavras homens sexualmente inseguros (o que não admira: perante Taís Araújo até Casanova tremia) ou, então, criaturas infelizes que ainda não tiveram coragem de sair do armário.

Os insultos racistas a beldades negras são um problema de polícia; mas, com tanta sexualidade problemática, pergunto honestamente se não haverá também um problema de saúde pública.

*

Sugestões literárias? Com certeza. Duas.

O meu ilustre colega de letras, Jorge Reis-Sá, tem novo livro no Brasil. Depois de "Todos os Dias" (Record), chega "A Definição do Amor" (Tordesilhas), um tratado sobre "a arte da perda", para usar as palavras de Elizabeth Bishop.

Então encontramos uma mulher, Susana, deitada na cama de um hospital e irremediavelmente condenada à morte. No ventre de Susana, uma criança em gestação. E é pelas palavras de Francisco, o marido e futuro pai, que acompanhamos esse calvário de sofrimento e esperança - um diário de luto onde o passado, o presente e o futuro se projectam sob a sombra da morte e da vida.

Com uma linguagem poética e pungente, Reis-Sá escreve uma narrativa onde o amor tem várias definições - e várias devastações. É um dos melhores livros portugueses que li nos últimos tempos.

No domingo, sai com a Folha "Memórias Póstumas de Brás Cubas". O leitor ainda não leu? Por favor, não diga isso em público.

"Brás Cubas" deve ser o livro que mais vezes li na vida. Mas nada se compara à memória da primeira impressão: foi na adolescência, por indicação paterna, e o efeito não é aconselhável a menores de 18 anos.

Ali estava um defunto, do outro lado da eternidade, a contar a sua vida - ou, mais exactamente, a sua não-vida - com a mesma fatuidade com que passara por ela. Uso a palavra "fatuidade" porque Brás Cubas confessa que a herdou do pai. Difícil discordar.

Essa qualidade está presente no estilo - belíssimo e hilariante, para nós; "um andar de ébrios", para o autor, e motivo de orgulhos ou engulhos, consoante o estado de espírito. E depois continua nas suas relações familiares, mundanas, políticas, sentimentais. E académicas.

Bacharel em Direito (por Coimbra, claro), Brás confessa que só trouxe do Mondego "a ornamentação" do título. E se o pai ainda tem a consciência mínima para morrer de desgosto ante o naufrágio político do filho, o rapaz despacha o assunto com um encolher de ombros ("tinha de morrer, morreu") antes de se lançar nos braços de uma nova conquista.

O amor é eterno enquanto dura, diz a canção; e, quando não dura mais, ei-lo a observar uma mosca que arrasta uma formiga enquanto a amada se debulha em lágrimas. Como explicar a fatuidade de Brás Cubas?

Lendo o capítulo sobre o seu delírio, uma das obras-primas da literatura universal: o confronto com as misérias da espécie, longe de mergulhar o personagem no pessimismo mortificante, indica-lhe a porta do riso e da galhofa.

Pode não ser a porta mais apropriada para os rigores da ética. E, além disso, quem vive a ondular ao sabor dos caprichos facilmente sucumbe às garras das "ideias fixas" - no caso de Brás Cubas, um "emplasto anti-hipocondríaco" que foi a causa, não da sua glória - mas da sua morte.

Pessoalmente, esse riso infectou-me a pena e a tinta. E, nos desaires da existência, é em Brás Cubas que penso antes de fugir no dorso de um hipopótamo. 

Original aqui

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