Opinião

O elemento imundo da vida

Luiz Felipe Pondé
Nunca entendi a busca de pureza nas pessoas. Depois de dedicar alguns anos de estudo à religião, claro que entendo o conceito e a história dessa busca. Entendo que a vida é impura na medida em que é confusa e ambivalente de uma forma enlouquecedora.

Como dizia santo Agostinho, nascemos em meio a fezes e urina, causando uma dor física enorme numa mulher, quase a matando, imersos na mais pura dependência e incapacidade de sobreviver por anos. Viveremos sempre em meio a desordem, imperfeição e frustração. Mas, ainda assim, sinto que esse pântano é nosso elemento. A tentativa de negá-lo sempre me parece o ato de uma criança amedrontada.

A infância é uma ameaça, um combate aos medos e aos mais fortes do que nós. Os pais, sempre aquém do esperado. O início da idade adulta, cheio de expectativas e esperanças, que nem sempre se tornam realidade. A rotina como a negação dos mais belos sonhos. A incapacidade de lidar com a realidade, uma constante.

A vida profissional, um risco contínuo entre o sucesso incerto, o fracasso quase certo e a mediocridade como nossa irmã gêmea. O amor –ah! o amor–, esse sentimento delirante e encantador. A amada, sempre um vulcão capaz de nos aniquilar de beleza, insegurança e anseios.

O mundo, um palco em que corremos de um lado para o outro, como um ator, seguindo um roteiro escrito por um idiota, cheio de som e fúria, significando nada, como diria Macbeth, esse especialista na impureza humana.

E, então, as pessoas se põem a procurar por um estado de espírito em que tudo, por um passe de mágica, torne-se belo, bom e verdadeiro. Entendo esse anseio como ideia, nunca estive nem um milímetro sequer perto dele como afeto.

O documentário "Espaço Além "" Marina Abramovic e o Brasil" é um exemplo claro dessa busca espiritual pela "cura da alma". Tema clássico na história da espiritualidade que me fascina, apesar de ser completamente estranho a ele. Suspeito que uma "alma curada" seja uma alma morta. Como dizia o filósofo romeno Emil Cioran, foi a dor que nos despertou do sonambulismo da matéria.

A autora diz que o motivo de sua dor (emocional, não física) foi o fato de seu marido tê-la trocado por outra mulher e de sua mãe ter sido uma maníaca por limpeza contra o risco de contaminação com vírus. Sua infância teria sido um tanto triste e sozinha por conta do medo que a mãe tinha de que amigos em casa pudessem trazer doenças para sua pequena filha Marina.

Ou seja, duas causas prosaicas e cotidianas. A traição amorosa e uma mãe meio louca. Uma das duas, todo mundo sempre sofre.

Mas, o que me chamou especialmente a atenção é o texto final narrado, quando a autora mostra sua exposição em São Paulo, no Sesc Pompeia, e os rostos das pessoas buscando a "pureza". Rostos de todas as cores e gestos, todos irmanados no amor e na diferença harmônica e não conflituosa. Acho isso um delírio infantil, ainda que compreenda a dor por trás dessa busca. É insuportável essa dor, mas ela é nosso elemento.

Talvez eu tenha sido estragado pelo ceticismo e pela tragédia (minha verdadeira "religião") ou por anos de análise em excesso ou por um temperamento demasiadamente passional, mas não creio nessa pureza. E, mais do que isso, duvido que isso seja de fato uma realidade positiva na vida das pessoas. Pelo contrário, não concebo a vida se não for atolada nas ambivalências e no desespero da imperfeição.

Não se trata de fazer um elogio ao divino Marquês de Sade, mas, apenas, de reconhecer que parece insuportável para grande parte da humanidade o fato de a vida ser impura e, de alguma forma, "imunda". Contaminada pela finitude e pelo desencontro contínuo consigo mesma, nossa vida é sempre um roteiro atormentado por um autor incapaz de dar sentido à sua obra.

Alguns buscam a pureza na espiritualidade, outros na política (acho esse caso ainda mais risível), mas nunca encontrarão. A pureza é como um desses fantasmas que parecem anjos, mas que na verdade não passam de um medo avassalador no meio da noite escura da alma.

Nosso elemento é o demoníaco e sua agonia por não ser Deus.

Original aqui

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