Opinião

Pacientes inaceitáveis?

Contardo Calligaris
Uma nova lei do Estado do Tennessee, nos Estados Unidos, autoriza o psicoterapeuta a recusar um atendimento que lhe pareça incompatível com os princípios nos quais ele (o terapeuta) "acredita sinceramente" (religiosos ou outros).

A lei estipula que, nesse caso, o terapeuta deve encaminhar o paciente para um colega que esteja disposto a acolhê-lo. E a recusa de atender não é admissível em caso de urgência (por exemplo, se o paciente manifesta tendências suicidas).

Aos meus olhos, trata-se de uma lei inócua. Qualquer terapeuta sempre pode alegar que não tem horário. E sempre pensei que um profissional pode recusar um paciente pelo qual, em vez de alguma empatia, ele sentiria animosidade.

Se um psicoterapeuta atendesse um paciente que ele "desaprova" ideológica ou moralmente, ele tenderia a influenciar ou converter o seu paciente. A psicoterapia se transformaria em catequese religiosa e moral ou em propaganda política. Melhor se abster, nesse caso. Há pesquisas, aliás, que mostram que, em geral, os pacientes receiam e tentam evitar um profissional que queira influenciá-los e convertê-los.

Seria bom, então, pacientes e terapeutas concordarem em matéria de política, religião e moral? Já pensou? Quem procurasse um terapeuta hoje perguntaria, na hora de marcar a consulta: "Você é a favor do impeachment ou acha que é golpe?".

A lei do Tennessee (como outras parecidas) suscita protestos nos EUA, não tanto pela letra quanto pelo espírito: ela foi concebida explicitamente para permitir a discriminação de grupos minoritários, cujos membros passariam a ter dificuldades para serem atendidos.

Pertenço à American Counseling Association, que possui 60 mil membros de todas as especialidades psicoterapêuticas. Para o código de ética da ACA, o terapeuta deve aceitar qualquer paciente e respeitar sua diferença.

Um terapeuta pode ter seus princípios e crenças; só não pode ser um moralista, ou seja, não pode desaprovar e censurar nos outros as tendências que ele não consegue reprimir em si mesmo. Desse vício ordinário ele deveria ter se livrado na sua própria terapia, que é parte de sua formação.

As discordâncias que tornariam o tratamento impossível são um caso extremo. E um terapeuta que "desaprova" moralmente muitos pacientes deveria voltar para o divã com urgência. Mas as análises impossíveis eram um excelente tema de conversa entre analisandos, durante minha formação.

Eis um exemplo que daria um bom conto à la Modiano. Um oficial alemão, na Paris ocupada, tem um problema de ejaculação precoce com as "mademoiselles" da noite. Ele procura um analista e encontra um judeu. Estamos em 1942. Por parentes na Polônia, o analista sabe dos campos e da "solução final". Ele aceita esse novo paciente? Imaginemos que sim. O oficial se engaja na análise, quatro sessões por semana. Mas eis que ele toma conhecimento de que, no dia seguinte, os judeus de Paris serão presos e deportados. Ele informa seu analista para que ele possa fugir com sua família? E, se não o informar, como será a última sessão?

A lei do Tennessee foi concebida para que os terapeutas religiosos tivessem liberdade para recusar o tratamento de pacientes cuja vida sexual, por exemplo, eles desaprovam. A ideia tem dois lados cômicos: 1) se os terapeutas religiosos passarem a recusar, por exemplo, homossexuais, adúlteros e adúlteras etc., eles fecharão seus consultórios; 2) no fundo, a lei protege os pacientes discriminados, evitando que caiam nas mãos de terapeutas ruins.

Em filigrana, a lei reafirma no campo da psicoterapia o direito de os médicos religiosos se recusarem a praticar os abortos que a lei federal permite.

Eu sou favorável à descriminalização do aborto, mas concordo que ele não seja uma prática obrigatória para os médicos que acreditam que o feto, se não o embrião, é receptáculo de uma alma.

Então, qual o perigo de uma lei que permite a terapeutas religiosos recusar pacientes que "desaprovam"?

Minha formação é francesa –ou seja, de um país onde quase a metade da população geral se diz ateia e onde um terapeuta religioso é uma curiosidade. Nos EUA, atendi só em Nova York. Talvez, para medir as consequências da lei, seja preciso clinicar numa cidadezinha ou mesmo numa capital do Sul –sei lá, Montgomery, no Alabama. 

Original aqui

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