Opinião

A sociedade do espetáculo

João Pereira Coutinho
1) Anos atrás, a revista "Rolling Stone" fez uma capa com Dzhokhar Tsarnaev. Quem? Entendo, leitor: a memória é curta, a orgia das notícias é longa. Digamos apenas que Dzhokhar e seu irmão Tamerlan foram responsáveis pela carnificina na maratona de Boston, onde centenas de pessoas morreram ou ficaram estropiadas.

Com uma pose de estrela do rock, Dzhokhar surgia na capa como se fosse o novo ídolo dos palcos. E a "Rolling Stone", que sempre teve fama de "transgressiva" (o supremo adjetivo brega), cruzava a linha mínima da decência.

Velhos hábitos não morrem depressa. E a mesma "Rolling Stone" decidiu publicar agora matéria longa sobre o encontro entre Sean Penn e Joaquín "El Chapo" Guzmán, o maior narcotraficante do mundo.

Como escreve o próprio Sean Penn na introdução à entrevista, "El Chapo" fornece metade das drogas que os EUA consomem. Lemos essas linhas e imaginamos Sean Penn, tomado por excitação adolescente, a babar de admiração pelo feito olímpico. Mas há pior: para que não restem dúvidas, "El Chapo" é, aos olhos de Penn, a parte mais inocente da história.

Para começar, o ator inicia o artigo com uma comparação pungente entre as biografias de ambos: ele, Penn, nascido em família de classe média e surfando as ondas da Califórnia na juventude; Joaquín, pelo contrário, nascido na pobreza e "obrigado" a cultivar droga desde tenra idade.

De resto, e em matéria de violência, "El Chapo" é um "empresário", que só recorre ao homicídio em último recurso, diz-nos Penn (vai em paz, Joaquín, e que Deus te abençoe). Porque a violência, a verdadeira violência, está nos Estados Unidos, que continuam a consumir. Se não houvesse consumo, imagino que "El Chapo" estaria no Tibete, dedicado à meditação e ao amor pleno.

Depois dessa introdução, a entrevista segue pelo mesmo caminho: ali temos um homem que nasceu pobre; que ama a família; que não deseja mal a ninguém. Sean Penn prometia entrevistar um narcotraficante. Encontrou um quase santo à espera da canonização oficial. E a única coisa a lamentar é a polícia ter localizado "El Chapo" -segundo dizem, por causa da entrevista- e o ter enjaulado novamente. Vem nos livros: não há santos sem martírio.

A entrevista de "El Chapo" não mostra apenas o apodrecimento da cabeça de Sean Penn (o que seria rotineiro); mostra, coisa pior, o apodrecimento do jornalismo, que não é capaz de estabelecer uma diferença entre a criminalidade e a justiça, a mentira e a verdade.

Aliás, não apenas do jornalismo: depois da captura de "El Chapo", parece que houve forte procura das mesmas camisetas que o narcotraficante usou na entrevista. Também faz sentido: depois do martírio e da santidade, só faltam as relíquias.



2) Todos os dias, passo pela banca dos jornais e encontro mais uma "celebridade" que informa o mundo sobre a sua doença. Depois, para que não restem dúvidas, a "celebridade" partilha uma foto -rosto cadavérico, ausência de pilosidade por causa dos tratamentos. Nos meses seguintes, a imprensa especializada vai seguindo o enfermo até a recuperação total -ou à destruição final.

A ideia de que a doença e a morte, como o sexo e o amor, são assuntos privados, eis um pensamento anacrônico que se perdeu na "tirania da transparência" em que vivemos. Tudo é público quando existe um público. Não me admira que a morte de David Bowie -um dos meus últimos heróis- tenha abismado os abutres. Como foi possível guardar segredo sobre um câncer?

Depois do espanto, veio uma explicação que se ajusta à sociedade do espetáculo: a morte de Bowie foi uma obra-prima, dias depois do lançamento de "Blackstar", o premonitório álbum.

Cada um acredita no que quiser. Eu prefiro ler o artigo do "Daily Telegraph", no qual Robert Fox, produtor do musical "Lazarus" e amigo de Bowie há mais de 40 anos, conta como foram os últimos meses do artista.

A palavra é só uma: banais. Bowie comunicou-lhe que estava doente. Pediu-lhe sigilo por causa dos "paparazzi" e para proteger a família. E sempre acreditou, mesmo quando preparava "Lazarus", que talvez pudesse sobreviver.

Quando a ilusão se desfez, David Bowie preferiu o recato. Bem sei que isso incomoda os comedores de lixo que rastejam por revistas, jornais ou redes sociais. Mas a atitude de Bowie, nos velhos tempos, chamava-se apenas dignidade. 

Original aqui

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Mosca-dragão

Pegoava?

Jundu