Opinião

A servidão voluntária

João Pereira Coutinho
Sazonalmente, recebo mensagens de leitores que me perguntam por livros fundamentais no mundo da política. Respondo. Melhor, vou respondendo. E é provável que, nas canseiras do dia, os meus disparos tenham alvos diversos: um Aristóteles aqui; um Maquiavel ali; um Locke mais além.

Mas quando penso demoradamente no assunto, consultando os meus neurônios com uma contemplação digna de Montaigne, percebo que nunca sugeri um amigo dele, autor de um ensaio crucial na biblioteca de qualquer cavalheiro que se preze.

Verdade que o autor em questão escreveu o texto na juventude para depois o renegar. Não vou especular sobre esse gesto (outras histórias). Exceto para dizer que o mal estava feito e, no meu caso, a cabeça do cronista já estava formatada pelas palavras do sr. Étienne de la Boétie (1530 - 1563).

O nome não figura como deveria nos grandes compêndios do pensamento político, embora a importância do francês seja imensa na Europa continental. Sem referir, claro, as palavras que o amigo Montaigne lhe dedicou nos seus ensaios.

O texto em causa intitula-se "Discurso sobre a Servidão Voluntária" e, com a devida vênia a todos os anarquistas posteriores, que só impropriamente podem ser considerados discípulos de Boétie, não encontro reflexão mais brilhante sobre a natureza da tirania –e, atenção, sobre a natureza daqueles que se submetem ao tirano.

Porque essa é a questão que anima o ensaio. Como é possível que homens, cidadãos, nações inteiras possam sofrer privações mil às mãos de uma única criatura?

O tirano, afirma Boétie olhando para a história clássica, é normalmente a figura mais ridícula e "efeminada" que existe. Raramente é um Hércules, raramente é um Sansão. Para usar a magistral prosa de Boétie, ele é "um estranho ao poder da batalha", um estranho "nas areias do torneio".

E, no entanto, é aos pés dessa anedota que os homens voluntariamente se escravizam. A ela concedem poder; a ela entregam as chaves das suas próprias correntes. Como explicar esse espantoso fenômeno?

Por interesse, dirá Boétie, referindo-se a uma minoria. Gente de igual caráter aproxima-se do tirano para lucrar alguma coisa com ele. Mas, mesmo sobre essa gente vil, as perguntas do autor são as mesmas: que existência será a dos rastejantes quando passam o dia tentando agradar à pessoa que mais temem?

E, quando não são os pequenos tiranos a submeterem-se à grande tirania, é o resto da nação em peso a fazê-lo, o que torna a servidão voluntária ainda mais insondável.

Boétie arrisca uma hipótese: quando a tirania começou, é possível que as primeiras vítimas tenham sentido o fato como uma privação fundamental.

Mas o tirano só sobrevive porque a servidão torna-se uma espécie de tradição. Gerações passam, a memória do crime apaga-se. E, para quem nunca conheceu um regime de liberdade, viver sem liberdade parece a mais natural das condições.

A proposta final de Boétie é, logicamente, simples: não é preciso lutar contra o tirano para terminar com o abuso; basta que um povo inteiro não colabore mais na sua própria escravidão. "Sem madeira, o fogo apaga-se", escreve metaforicamente o autor. E o Colosso, sem pedestal, quebra-se em mil pedaços, conclui.

O texto foi escrito no século 16. Mas é impossível não pensar no jovem Boétie quando olhamos para o nosso tempo.

Tivemos ditaduras que sobreviveram obscenamente. Não apenas pelo aparato policial que elas promoveram. Mas também porque milhares, milhões de seres humanos permitiram que elas sobrevivessem. Como? Entrando voluntariamente no curral.

Curiosamente, se Boétie teve herdeiros, eles encontram-se nos intelectuais do Leste da Europa que lutaram contra o comunismo. Nomes como Václav Havel que, ao apelarem para "o poder dos sem poder", repetia o que Boétie dissera antes dele: um povo que não é cúmplice da mentira também não será cúmplice da sua própria servidão.

E, se o leitor pensa que o texto de Boétie só se aplica às tiranias históricas, desengane-se: ele tem igual valia para as pequenas tiranias cotidianas. O dilema, ontem como hoje, permanece: por que motivo tantos de nós se submetem aos caprichos de um só – um político, um chefe, um amante?

Se os homens repetissem mais vezes essa pergunta e agissem em conformidade, a máquina que os oprime pararia no minuto seguinte.

Original aqui

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