Opinião

O garoto de Ipanema

Ferreira Gullar
Infelizmente, não convivi tanto com Tom Jobim quanto convivi com Vinicius de Moraes. Mas, sempre que nos encontrávamos –não por acaso em algum bar, na companhia de amigos– reinava entre nós um bom astral.

De minha parte, porque curtia tudo o que ele compunha e pela simpatia natural que sua personalidade irradiava. Ele era, sem dúvida alguma, gente boa, frequentemente sorridente e sempre afetuoso.

O convívio não foi maior por várias razões e uma delas é que frequentávamos bares diferentes: o dele, de Vinícius e sua turma, entre outras figuras da noite carioca, era o Plataforma, enquanto o meu e de minha patota era o La Fiorentina, ali no Leme; e, depois, o Luna Bar, em Ipanema.

E não por acaso: enquanto o nosso grupo era gente de teatro e do teatro político, o de Tom era de compositores e músicos, ou seja, a geração bossa nova, que acabara de nascer. Fora isso, e talvez principalmente, eles bebiam uísque, nós bebíamos chope.

Pode parecer que não, mas a verdade é que o bebedor profissional de uísque não bebe em qualquer lugar. Necessita de silêncio, penumbra e maior privacidade. Quase digo que eles são a elite, ao contrário da turma do chope, menos profissional e mais perto do povão.

Mas isso é brincadeira, já que nem Tom nem Vinicius, cariocas de origem, nada tinham ou pretendiam ter de elite. Talvez a razão seja mesmo a sua ligação com a música –uma música que, embora popular, era sofisticada, que é o caso da bossa nova.

Digo isso porque nem Vinicius nem Tom alimentavam pretensões elitistas. Basta lembrar que Vinicius, diplomata de carreira, terminou a vida em mangas de camisa, cantando em shows de samba.

É certo que tinha sido cassado pela ditadura, mas nem por isso tinha que virar boêmio. Tom Jobim também fez shows, mas, pela natureza de sua música e por sua personalidade especial, havia nele uma sofisticação que independia de seus propósitos.

Diga-se também que Tom era um compositor no mais puro sentido desse termo, de um talento excepcional, apoiado no conhecimento profundo da arte musical, a qual pôs a serviço da música popular. Daí a mistura de erudito e popular, de simplicidade e sofisticação, que faz o encanto de suas composições, chamem-se elas "Garota de Ipanema", "Samba do Avião" ou "Águas de Março".

O nosso grupo –o Grupo Opinião– também era chegado à música, particularmente à música das escolas de samba, com seus cantores e compositores dos subúrbios cariocas.

Isso se deve a Thereza Aragão, carioca da Tijuca, que se formou frequentando os ensaios das escolas e os desfiles carnavalescos.

Por isso mesmo, ao nos instalarmos no teatro Opinião (a que demos o nome), ela criou "A Fina Flor do Samba", encontro de sambistas às noites de segunda-feira, onde se revelaram nomes como o de Zé Keti e Martinho da Vila, entre tantos outros, além de cantores e passistas.

Foi assim que o samba das escolas ganhou a zona sul do Rio e a gente dessa área passou a ir aos ensaios e até mesmo a desfilar no Salgueiro, na Mangueira, na Portela...

Tom nunca se apresentou no Teatro Opinião; Vinícius, sim, num espetáculo que revelou, para o público carioca e para o país, a nova geração musical da Bahia: Gracinha (que se chamaria mais tarde Gal Costa), Caetano Veloso e Gilberto Gil. Maria Bethânia já havia sido revelada no show Opinião, em que substituiu Nara Leão, cantando com Zé Keti e João do Vale.

Todas essas coisas me vieram à lembrança ao saber que Tom Jobim estava de volta a Ipanema.

Ele, nascido na Tijuca, criara-se ali nas areias daquela praia, que se tornaria a mais famosa do planeta, graças à música que compôs com Vinicius de Moraes. Mas, a certa altura, trocou o marulho das ondas pelo soar das copas e o cantar dos passarinhos do Jardim Botânico. Agora, esculpido em bronze, mais jovem, com o violão no ombro, está de volta, como um garoto de Ipanema.

E de repente lembro-me de ele, no centro da cidade –o lugar menos apropriado para encontrá-lo–, na avenida Graça Aranha, de paletó desabotoado e uma pasta na mão, acenando para mim efusivamente e sorrindo. Disse algo que não deu para ouvir, mas também acenei para ele, com o mesmo entusiasmo. Foi a última vez que o vi. Era março de 1994.

Original aqui

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