Opinião

A grande proeza de Putin

O Estado de S. Paulo
Apreciador de voos retóricos, desta vez o presidente Vladimir Putin não exagerou ao qualificar como "evento que marcará época" o acordo da ordem de US$ 400 bilhões assinado entre a Rússia e a China, ao cabo de uma década de negociações, pelo qual Moscou venderá anualmente a Pequim 38 bilhões de metros cúbicos de gás durante 30 anos, a partir de 2018. Em termos estritamente financeiros, o negócio parece ter ficado melhor para o comprador do que para o vendedor. Este deverá receber de seu novo cliente apenas US$ 350 por mil metros cúbicos, ante os US$ 380 que chega a cobrar dos países europeus.

Já da perspectiva superior das relações globais de poder, o ganho russo poderá ser tão grande como é patente, desde já, a derrota dos Estados Unidos, com a sua política de circunscrever a influência da Rússia, que data dos anos Bush. O presidente Obama a transformou numa estratégia de isolamento diplomático e econômico em seguida à anexação da Crimeia por Moscou e a sua aberta intromissão nos conflitos internos da Ucrânia. O mínimo que se pode dizer é que Putin acaba de dar a volta por cima. O acordo do gás é a sua maior proeza desde que ascendeu ao Kremlin em 1999, como presidente interino.

Nesses 15 anos, à medida que consolidava a sua autocracia, fixou-se na meta de reconstruir o império russo - sob o seu comando inconteste, bem entendido. Ele chegou a afirmar que a derrocada de sua mais recente encarnação, a União Soviética, foi "a maior catástrofe geopolítica do século 20". Desse projeto - que ainda carece de um sistema produtivo moderno além do setor de petróleo e gás - faz parte a União Econômica Eurasiana, o grandioso sonho de Putin para competir com a União Europeia e os EUA. O pacto com a China representaria um passo firme nesse rumo. Não que Pequim vá trocar de parceiros comerciais: o seu alvo seguirá sendo o Ocidente. As suas trocas com os EUA valem três vezes o comércio com a Rússia.

Mas, na esfera política, as suas tensões com Washington são crescentes. O presidente Xi Jinping não disfarça o ressentimento com o apoio de Obama a outros países asiáticos em suas desavenças com a China. E, embora ele tenha ficado neutro na crise da Ucrânia, a sua aproximação com Putin não perdeu intensidade. Desde a posse de Xi, em fins de 2012, eles já se encontraram sete vezes - como anteontem em Xangai para a celebração do acordo energético. A escalada de conflitos ideológicos que parecia levar a URSS e a China a um confronto militar nos anos 1970 jaz na proverbial lata de lixo da História.

O acesso ao gás russo - pelo qual Pequim desembolsará US$ 50 bilhões para financiar a construção de um gasoduto de 4 mil quilômetros da Sibéria à fronteira comum - permitirá à China diminuir sua dependência do carvão cuja queima envenena o ar de suas megalópoles e contribui gravemente para o aquecimento global. Já a balança comercial russa dependerá menos das compras europeias de gás - que os países da área decidiram reduzir, quando possível, como reação à ingerência de Putin na Ucrânia. É de lembrar que os protestos em Kiev contra o então presidente filo-russo Viktor Yanukovich começaram depois que ele cedeu às pressões de Moscou para frear a aproximação ucraniana com a União Europeia.

O acordo de anteontem - nominalmente entre a estatal russa Gazprom e a chinesa National Petroleum Corporation - é um negócio entre desiguais - a segunda maior economia do planeta e aquela que encolheu para a condição de "emergente". É, literalmente, de outro século a distância entre a potência econômica soviética e a sociedade agrária que Mao Tsé-tung resolveu industrializar com o Grande Salto para a Frente de 1958 ao custo de 40 milhões de mortos por inanição. A nova parceria estratégica com a China, propiciada pelas suas vastas reservas de gás, não devolverá à economia russa a supremacia perdida. Mas Moscou está conseguindo, via Pequim, o que de há muito Putin ambicionava: mudar o equilíbrio geopolítico global em detrimento de Washington. 

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