Pitacos do Zé


Navalha e Pindoba

José Ronaldo dos Santos
Conforme já escreveu alguém, “as pessoas deixam de sonhar com a superação das dificuldades, passando a sobreviver com elas”. Eu acrescento algo mais grave: sobreviver com as dificuldades é torná-las piores ou propiciar que outras germinem. Tem dificuldades e dificuldades. Veja um impasse exemplar:

No morro perto da minha casa foi construído uma “casa”, depois outra e mais outras. Com fossas improvisadas, o excedente cai num córrego que segue para o rio e que deságua no mar. O mar e as praias, tal como uma comunidade perfeita, repartem tudo. Assim,  as  dificuldades - que não eram poucas! - ganham outras dimensões, avolumam-se, causam doenças, destroem vidas na natureza, geram transtornos sociais, afugenta turistas etc.

No litoral, sobretudo em Ubatuba, eu acompanho as transformações e as devastações, sobretudo a partir do advento do turismo, da ocupação desordenada e da migração intensa. Se por um lado fomos colocados na modernidade ditada pelo capitalismo, por outro pagamos um preço alto por isso. Dizia o velho Arcelino, da Praia do Perequê-mirim: “Lucro e destruição são os dois lados de uma mesma moeda”. Assim, eu sinto que passa da hora de agirmos para voltar a equilibrar o nosso espaço. Só assim vamos diminuindo a nossa dívida para com as futuras gerações.

Por esses dias, percorrendo um dos nossos caminhos de servidão, entre as praias do Puruba e da Justa, também conhecido como Trilha do Telégrafo, novamente voltei a pensar numa alternativa para preservar e democratizar a riqueza ambiental e cultural desse espaço caiçara em Ubatuba. Afinal, todo esse percurso poderia ser tombado como uma das nossas reservas nativas. Para homenagear os saudosos patriarcas do local, eu até teria a sugestão de nome: Reserva Caiçara “Tio Durval e tia Belinha”. Quantos roçados foi a garantia de suas vidas nesse lugar?! Hoje, uma característica marcante na maior parte desse caminho é a presença de capim navalha e de coco pindoba.

Uma reserva caiçara, na minha concepção, garantiria um turismo cultural. Eu, no caso em questão, explicaria a importância desse Caminho de Servidão na ligação das comunidades das diversas praias, quando nem se sonhava com rodovias, justificando a função dos balseiros nos rios mais largos (Maranduba, Escuro, Indaiá, Puruba, Ubatumirim e Fazenda). Através da mata secundária, trabalharia o contexto dos roçados de subsistência, mostraria os produtos de coleta que tanto nos sustentaram (pindoba, palmito, indaiá, araticum...), explicaria as plantas que nos acudiam nas doenças e dores diversas. Ao encontrar os resquícios da linha telegráfica (postes de ferro), salientaria o papel que esse meio de comunicação teve em épocas de isolamento. Contaria, a partir das ruínas do posto telegráfico da Praia da Justa, a epopeia da fuga do presídio da Ilha Anchieta, quando o telegrafista foi feito refém e teve de acompanhar o grupo de criminosos até os limites de Cunha e Parati. Enfim, muitas outras coisas são possíveis de servirem de ferramentas para moldar uma cultura preservacionista e solidária. Porém, é preciso proteger tais espaços para cortar pela raiz as futuras dificuldades. Eu desejo que mais gente, além dos meus filhos, saibam e sintam esse espaço caiçara.

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