Colunistas

Na saúde e na doença

A arapuca dos planos de saúde, a “retrógrada” posição do CFM contra a importação de médicos e os números de um sistema de saúde feito para enriquecer do lado de lá à custa dos que morrem do lado de cá

MÁRCIA DENSER
Assim como o dinheiro, a especialidade e a necessidade não têm pátria.

Por essa razão, não fosse o fato de eu ter passado os primeiros seis meses deste ano acometida pela extrema necessidade de cuidar duma pessoa doente extremamente próxima e amada – minha única irmã, quase da mesma idade, derradeira parente viva duma família nuclear já extinta – donde a necessidade, repito, de ter de tratar dos direitos da paciente junto ao plano de saúde, para o qual contribuíra com R$ 600 por mês, durante cerca de 25 anos, como professora doutora duma das universidades mais prestigiadas do estado, isto é, do Brasil.

Porque é atrás de direitos que é preciso correr atrás (eu sei que essa frase é absurda mas é precisamente DISTO que se trata). Porque se você bobeia – no sentido de “deixar as coisas correrem normalmente, certo de que, ao fim e ao cabo, seus direitos serão reconhecidos” – esqueça: você está fodido! Pois somente quando você realmente PRECISA usar o plano de saúde – qualquer plano – é que fica sabendo o que ele NÃO COBRE – malgrado o preço, as condições, o tempo de contribuição, o caralho.

No caso da minha irmã, cujas características da doença a impossibilitavam de mover-se da cama, que dirá sair para consultas médicas!, por exemplo, o plano não contemplava um home care e, muito menos, médico que a atendesse idem (se ela quisesse, que fosse ao consultório e a cada 35 dias pelas exigências mínimas do plano) e nem pensar em pedir ambulância a domicílio! (um luxo para eles totalmente desnecessário).

O problema é que a doença de minha irmã era degenerativa, isto é, progredia dia a dia para trás e para baixo, isto é, para pior, donde as condições do plano, descritas acima, contribuírem eficazmente para o seu agravamento. E bem rápido – para os planos de saúde, o atendimento de “emergências” só é literalmente preenchido nesse sentido, fui clara?

Nos últimos dias de vida, já com uma infecção que se generalizava, indicada pela febre de 40 graus que não cedia, arritmia cardíaca e pressão 5/4, foi preciso (necessário, a tal necessidade a que me referi lá em cima) que nós, familiares, a levássemos de automóvel ao pronto socorro mais próximo (atendido pelo plano) onde, naturalmente, não havia vaga na UTI (pois, assim como os bancos, o prédio desse tipo de hospital vive em reformas, a altura dos rios de dinheiro que saem do NOSSO bolso), de forma que, após doze horas de marchas e contramarchas, ela foi novamente removida – com tudo que isto implica numa paciente terminal – para outro hospital em razão deste ter vaga na UTI.

Desnecessário dizer que nove horas depois ela estava morta.

Isso posto, seis meses atrás talvez eu não tivesse me interessado pela matéria

“Por que os médicos cubanos assustam”, assinada por Pedro Porfírio, do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde – Cebes (as coisas só começam realmente a nos interessar quando as sentimos na pele).

Porque ela aborda não só a necessidade como a especialidade. O que é precisamente o caso dos médicos cubanos que a presidente Dilma quer importar.

E aqui abro outro parêntesis: ao contrário do que muitos leitores julgam, não sou petista, muito menos dilmista incondicional. Aliás, faço sérios reparos à presidente: não é a toa que sua popularidade caiu 30 pontos percentuais (nos níveis de Collor de Melo e FHC): como servidora pública, essa senhora é inacessível! Tente qualquer um chegar até ela: impossível! Mas ajoelhar-se diante da mídia que a apunhala pela frente e pelas costas, ela o faz com prazer e espontaneamente.

Uma atitude absolutamente incompreensível e inexplicável – dado seu passado, sua biografia etc. – pra mim que fui sua eleitora. Cobrá-la? Eu teria todo o direito. Contudo, o verbo está no condicional, tanto quanto a indiferença e o descaso da presidente para com seus eleitores em geral e a população em particular.

Mas vamos à questão dos médicos e da situação da saúde no país. Diz o texto que a “elite corporativista teme mudança de foco que abale o nosso sistema mercantil de saúde. A virulenta reação do Conselho Federal de Medicina contra a vinda de 6 mil médicos cubanos para trabalhar em áreas absolutamente carentes do país é muito mais do que uma atitude corporativista: expõe o pavor que uma certa elite da classe médica tem diante dos êxitos inevitáveis do modelo adotado na ilha, que prioriza a prevenção e a educação para a saúde, reduzindo não apenas os índices de enfermidades, mas sobretudo a necessidade de atendimento e os custos com a saúde”.

Inevitavelmente, no Brasil existe a concentração (de médicos por m2) só nas grandes cidades. Dos 371.788 médicos brasileiros, 260.251 estão nas regiões Sul e Sudeste.

Mas neste momento, o governo da presidenta Dilma Rousseff só está cogitando de trazer os médicos cubanos, responsáveis pelos melhores índices de saúde do continente, diante da impossibilidade de assegurar a presença de profissionais brasileiros em mais de um milhar de municípios, mesmo com a oferta de vencimentos bem superiores aos pagos nos grandes centros urbanos.

E isso não acontece por acaso. O próprio modelo de formação de profissionais de saúde, com quase 58% de escolas privadas, é voltado para um tipo de atendimento vinculado à indústria de equipamentos de alta tecnologia, aos laboratórios e às vantagens do regime híbrido, em que é possível conciliar plantões de 24 horas no sistema público com seus consultórios e clínicas particulares, alimentados pelos planos de saúde.

Mesmo com consultas e procedimentos pagos segundo a tabela da AMB, o volume de  clientes (isso mesmo, a palavra é “cliente” e não “paciente!”) é programado para que possam atender, no mínimo, dez por turnos de cinco horas. O sistema é tão direcionado que na maioria das especialidades o segurado pode ter de esperar mais de dois meses por uma consulta (e isso é um fato comprovado por mim). Além disso, dependendo da especialidade e do caráter de cada médico, é possível auferir faturamentos paralelos em comissões pelo direcionamento dos exames pedidos como rotinas em cada consulta.

Há no Brasil uma grande “injustiça orçamentária”: a formação de médicos nas faculdades públicas, que custa muito dinheiro a todos os brasileiros, não presume nenhuma retribuição social, pelo menos enquanto não se aprova o projeto do senador Cristovam Buarque, que obriga os médicos recém-formados que tiveram seus cursos custeados com recursos públicos a exercerem a profissão, por dois anos, em municípios com menos de 30 mil habitantes ou em comunidades carentes de regiões metropolitanas.

Cruzando informações, podemos chegar a um custo de R$ 792 mil para o curso de um aluno de faculdades públicas de Medicina, sem incluir a residência. E se considerarmos o perfil de quem consegue passar em vestibulares que chegam a ter 185 candidatos por vaga (Unesp), vamos nos deparar com estudantes de classe média alta, isso onde não há cotas sociais. Um levantamento do Ministério da Educação detectou que, na Medicina, os estudantes que vieram de escolas particulares respondem por 88% das matrículas nas universidades bancadas pelo Estado. Na Odontologia, eles são 80%.

Em faculdades públicas ou privadas, os quase 13 mil médicos formados anualmente no Brasil não estão nem preparados, nem motivados para atender às populações do interior do país. E não estão porque não se habituaram à rotina da medicina preventiva e não aprenderam como atender sem o aparato tecnológico de que se tornaram dependentes. Números oficiais do próprio CFM indicam que 70% dos médicos brasileiros concentram-se nas regiões Sudeste e Sul do país. E em geral trabalham nas grandes cidades.  Boa parte da clientela dos hospitais municipais do Rio de Janeiro, por exemplo, é formada por pacientes de municípios do interior.

Segundo pesquisa encomendada pelo CFM, se a média nacional é de 1,95 médicos para cada mil habitantes, no Distrito Federal esse número chega a 4,02 médicos por mil habitantes, seguido pelos estados do Rio de Janeiro (3,57), São Paulo (2,58) e Rio Grande do Sul (2,31). No extremo oposto, porém, estados como Amapá, Pará e Maranhão registram menos de um médico para mil habitantes.

Mesmo nas áreas de concentração de profissionais, no setor público, o paciente dispõe de quatro vezes menos médicos que no privado. Segundo dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), o número de usuários de planos de saúde hoje no Brasil é de 46.634.678 e o de postos de trabalho em estabelecimentos privados e consultórios particulares, 354.536. Já o número de habitantes que dependem exclusivamente do Sistema Único de Saúde (SUS) é de 144.098.016 pessoas, e o de postos ocupados por médicos nos estabelecimentos públicos, 281.481.

A solução dos médicos cubanos é radical pelas características do seu atendimento, que mudam o foco no sentido de evitar o surgimento de doenças. Cuba é reconhecida por seus êxitos na medicina e na biotecnologia (vejam a questão da especialidade, como algo muito além da ideologia)

Cuba, país submetido a um asfixiante bloqueio econômico, mostra que nesse quesito – o privilégio da especialidade médica – é um exemplo para o mundo, com resultados infinitamente melhores do que os do Brasil. Graças à sua medicina preventiva, a ilha do Caribe tem a taxa de mortalidade infantil mais baixa da América e do Terceiro Mundo: 4,9 por mil (contra 60 por mil em 1959, quando do triunfo da revolução) – inferior à do Canadá e dos Estados Unidos. Da mesma forma, a expectativa de vida dos cubanos – 78,8 anos (contra 60 anos em 1959) – é comparável à das nações mais desenvolvidas.

Com um médico para cada 148 habitantes (78.622 no total) distribuídos por todas as regiões, registra-se 100% de cobertura. Cuba é, segundo a Organização Mundial de Saúde, a nação melhor dotada do mundo nesse setor. Segundo a New England Journal of Medicine, “o sistema de saúde cubano parece irreal. Há muitos médicos. Todo mundo tem um médico de família. Tudo é gratuito, totalmente gratuito. Apesar do fato de que Cuba dispõe de recursos limitados, seu sistema de saúde resolveu problemas que o nosso [dos EUA] não conseguiu resolver ainda. Cuba dispõe agora do dobro de médicos por habitante do que os EUA”.

No total, os médicos cubanos trataram de 85 milhões de pessoas e salvaram 615 mil vidas. Atualmente, 31 mil colaboradores médicos oferecem seus serviços a 69 nações do mundo todo.

Quando se insurge contra a vinda de médicos cubanos com argumentos pueris, o CFM adota também uma atitude política retrógrada, vergonhosamente atrasada.

Os mais de 30 mil médicos cubanos espalhados pelo mundo são um fato e uma realidade global incontestável. No centro da fotonovela, eis o “segredo do sucesso” desses profissionais: mais do que enriquecer, eles procuram salvar vidas e prestar serviços humanitários.

Pois é. A especialidade e a necessidade não têm pátria. Porque ambas jamais se colocam acima da humanidade.

O que não é a caso do dinheiro.

Mas isso é uma outra história.

Que jamais será contada – excluída a humanidade.

Publicado originalmente no "congressoemfoco"

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