Opinião

A imoralidade persiste

O Estado de S.Paulo
Novidade propriamente dita não é, mas há que registrar que os parlamentares tornaram a passar a perna no povo. A rasteira consiste em fazer crer que, atendendo aos justos reclamos da sociedade, cortaram na carne para erradicar o obsceno pagamento dos dois salários anuais extras - o 14.º e o 15.º - que em tempos idos outros políticos se autoconcederam e legaram às gerações futuras de deputados e senadores. A história verdadeira é outra.

Ainda em 1938, os congressistas instituíram uma ajuda de custo quadrienal para cobrir os gastos de mudança dos mandatários para a capital federal (o Rio de Janeiro à época) e dela para os seus Estados de origem, se o eleitor dispensasse os seus serviços ao término da legislatura. A paga seria perfeitamente aceitável se se limitasse aos parlamentares de primeira viagem que viessem a ter o infortúnio de refazer as malas ao cabo de quatro anos. Mas, já então, se tratava de uma esbórnia: o benefício se estendia, nas duas pontas, aos políticos que se reelegessem, não importando quantas vezes.

O que eles fizeram, depois, foi anualizar a imoralidade, multiplicando-a assim por quatro, sob a forma de dois salários extras a cada exercício. (Os senadores, cujo mandato é de oito anos, recebiam 16 pagamentos.) E o que os seus sucessores acabam de fazer - fingindo ir ao encontro das cobranças da opinião pública por um mínimo de decoro também na apropriação dos recursos do contribuinte - foi restabelecer a prática original. Preservados, vai sem dizer, os privilégios daqueles que não precisam voltar aos seus pagos por terem sido despejados de suas cadeiras, mas para "ouvir as bases" - ou melhor, cuidar da reeleição.

Para isso, aliás, os deputados recebem a afamada verba indenizatória de até R$ 34.258,50. A bolada se destina a ressarci-los das despesas com passagens aéreas, contas de telefone e correspondência e, cúmulo da exorbitância, com os seus escritórios políticos. Os seus funcionários, quando transferidos dos gabinetes no Legislativo, são pagos com dinheiro público. O político tem até R$ 78 mil mensais para remunerar, entre outros, os funcionários que pode contratar para o seu gabinete. Acrescentem-se R$ 3,8 mil mensais a título de auxílio-moradia - como se o Congresso não dispusesse de apartamentos funcionais para alojar a ampla maioria de deputados e senadores. E por aí vai.

Nessa macedônia de gastança e espertezas contábeis de todos os tamanhos, há o que evidentemente configura o equivalente ao proverbial assalto ao trem pagador. É inconcebível que parlamentares reeleitos recebam - a cada quatro anos, como era e voltará a ser, que diria anualmente - adjutórios para se instalar em Brasília ou dali regressar, quando instalados já estão e assim permanecem. É inaceitável a superlotação de seus gabinetes, bancada pelos impostos da população, de arregalar os olhos dos ocupantes dos principais Parlamentos do mundo democrático, o Congresso dos Estados Unidos e a Câmara dos Comuns da Grã-Bretanha.

As suas mordomias são café pequeno perto das que se outorgam os seus colegas brasileiros. Com a fundamental diferença de que aqueles correm o risco real de perder os mandatos quando desandam. Em outros países cujos legisladores se sentiriam em casa se exercessem o ofício em Brasília, a indignação da sociedade chega a transbordar. Foi o que se viu nas recentes eleições italianas. Um em cada quatro eleitores votou no Movimento Cinco Estrelas, criado praticamente às vésperas do pleito pelo comediante Beppe Grillo, com uma radical plataforma antipolítica. Por ele, além de outras mudanças, o Estado simplesmente deixaria de financiar a atividade partidária.

A demonização dos políticos e o desprezo pela instituição básica da democracia - o Parlamento - decerto constituem um perigoso equívoco. A denúncia dos abusos cometidos pelos mandatários eleitos para servir ao povo e não para se servir do seu dinheiro é um imperativo permanente, mas não substitui o debate sem ideias preconcebidas do quanto a população brasileira deve desembolsar para que a representem no corpo do Estado. Descartada a indecência das cifras atuais, não pode ser pouco a ponto de restringir a política aos abonados.

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