Coluna do Mirisola

Esse ódio não é meu, essa dívida não é minha herança

“Uma garotinha negra de, no máximo, cinco anos de idade puxava a barra da camisa da mãe, e esperneava: ‘Mãe, quero ser branca! Mãe! Mãe! Quero ser branca!’. Não faço outra coisa senão remoer: por que não consigo refletir sobre esse assunto?”

Marcelo Mirisola
Larguei o Direito em 1993. Descobri que conciliar e fazer acordos não eram a minha praia. Meu negócio era – e é, continua sendo – o confronto. Virei escritor. Acreditei que nenhuma outra atividade me daria a liberdade que, desde anteontem, foi posta em xeque.

Como é que um tema pode imobilizar um autor? Que rei sou eu?

Aconteceu enquanto eu esperava o frango assar na padaria que fica na esquina da rua Santo Amaro com Catete, aqui perto de casa. Vou relatar o que vi e ouvi, sem mais delongas.

Uma garotinha negra de, no máximo, cinco anos de idade puxava a barra da camisa da mãe, e esperneava: “Mãe, quero ser branca! Mãe! Mãe! Quero ser branca!”

Não faço outra coisa senão remoer: por que não consigo refletir sobre esse assunto? De onde vem a imobilidade? Será que pela primeira vez irei me omitir diante de algo que mexeu comigo? Depois de quase 25 anos de tanta briga, de tantos estragos e prejuízos em nome de uma liberdade que me cobra o preço diário do isolamento, agora vou afinar?

Aí me ocorreu Vinicius de Moraes: o branco com alma de preto mais querido do Brasil. A propósito: se não fosse o desprendimento bicolor, ele não teria escrito “Orfeu da Conceição”. De que outra maneira, Vinicius comporia os geniais afro-sambas com Baden Powell?

Isso posto, por que o inverso parece tão chocante? A generosidade é uma via de mão única? Qual a cor da tolerância?

“Mãe! Mãe! Quero ser branca!”

A padaria entrou em estado de catatonia e suspeição. A mãe fingia que não era com ela, e esperava o frango na fila, logo à minha frente.

Na hora, lembrei de Carlinhos Brown e Thaís Araújo. Negros globais. Da senzala dos Marinho. Eles vociferavam diante da câmera de um paparazzo: “preto é bonito”. Lembrei-me de outros orgulhos, e das camisetas 100% preto. Da política de cotas do governo, da dívida(?) que a sociedade brasileira teria com a escravidão. Mas aí uma pulga instalou-se atrás da minha orelha, e quis saber: por que uma descendente de imigrantes fudidos e estropiados, cujas almas operárias de burros-de-carga foram igualmente exploradas pelos brancos que escravizaram os ancestrais de Brow e Thais Araújo, ora, por que a Gabi, minha sobrinha que está prestando vestibular para Medicina, teria de pagar a dívida dos senhores de engenho, dos fazendeiros de café, dos coronéis, dos barões e dos saqueadores, dos bandeirantes estupradores, de toda uma corte de mercenários e genocidas de quatrocentos e tantos anos?  Vão cobrar do Rubens de Falco, porra!

Como pagar essa dívida? Fiz uns cálculos – enquanto a garotinha pedia outra vez a mãe para ser branca – e cheguei à conclusão de que quanto mais cotas forem criadas, mais crescerá a dívida dos branquelos, que, pela lógica da coisa, acabariam indo pro tronco caso reclamassem igualdade de cor, de canga e de alma.

Olhei pra garota, olhei pros frangos assando na TV de cachorro, e pensei comigo: esse ódio não é meu, essa dívida não é minha herança. Me recuso a passá-los adiante, quero apenas meu frango assado.

Mas e se a garotinha que não havia sido informada sobre a dívida que os branquelos tinham com ela, e se a garotinha que pedia à mãe: “Quero ser branca!”, bem, e se ela fosse… branca? Vou além: e se a menina fosse branca, estudasse numa Escola Parque da vida e pedisse a mesma coisa? “Mãe, quero ser preta! Mãe! Mãe! Quero ser preta!”

Quero apostar que ela seria motivo de orgulho dos pais e mestres. Todos branquelos, hippies milionários, politicamente corretos e acima de qualquer suspeita. Repito. Esse ódio não é meu, essa dívida não é minha herança. Minha alvura por um frango assado, bem assado!

Creio que não mereço o tronco por estar conjecturando sobre o pedido da garota. Levei o que me cabia: apenas o frango assado que paguei com o suor da minha pele branquela e azeda. A mãe deu uns cascudos na garota que abriu o berreiro e continuava querendo ser branca.

Lembrei de Brás Cubas cavalgando sua negrinha – lembrei da minha Gessy e da tia Nastácia censurada. Do mano Brown dizendo que preto tem que pensar como preto. Quase me senti um canalha. Não porque me enojasse diante do racismo que é festejado hoje em dia, mas porque aquela garotinha queria ser branca, porque ela havia colocado minha liberdade contra a parede. E eu seria um hipócrita se não tivesse dado voz e cor aos desejos dela.

Publicado originalmente no "congressoemfoco"

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