Coluna do Mirisola

ET Mazzaropi – uma história real de abdução

“Era como se a luminosidade daquele clarão me envolvesse num manto gelado, que tinha mais a ver com a visão em si do que com a baixa temperatura da noite”

Marcelo Mirisola
Amora era uma hippie em pleno 2009. Até hoje guardei essa história comigo. Um tanto pela inverossimilhança. Outro tanto pela vergonha. Mas chega uma hora que a ficção não dá conta do recado e a realidade acachapante dos fatos se impõe ao estilo. O nome disso pode ser constrangimento, transcendência ou apenas Amora.

Vou contar.

Ela me convidou para passar um final de semana em Lumiar. Aquela mesma. Do Beto Guedes. Todo mundo conhece a música, e eu fiquei perplexo ao saber que a cidade e Amora – as duas ao mesmo tempo – existiam pra valer: com o agravante de que o convite para conhecer a cidade partiu dela, Amora, a última hippie do planeta. Muito gostosa. À época, eu flanava barbudão pela Lapa e conversava com os espíritos da Gomes Freire, Lavradio e adjacências. As almas do Arco do Telles me recebiam exultantes e rejubiladas. Eu me encontrava em pleno carnaval do século dezenove. Sozinho, porém bem-acompanhado. Os becos,travessas, ruas e vielas me pegavam pelo braço, abriam suas janelas, estendiam lençóis brancos e davam seus recados e boas-vindas. A cidade me levava. Tirando pela média, levei poucos sustos. Tive uma experiência soturna e ameaçadoramente gay no Mosteiro de São Bento. Depois aconteceu no Museu Nacional de Belas Artes. Quando fui sugado para dentro de uma tela de Rodolfo Amoedo. Uma espécie de aspiração maligna ou escárnio plácido do artista – como se o olhar da mulher retratada me aguardasse por cento e cinquenta anos somente para revelar o título da tela: “Más notícias”. De resto, foi só felicidade e algumas solidões que iam e vinham conforme as ondas que rebentavam nos molhes do largo da Prainha, como se o aterro não fosse o suficiente para conter as histórias e as ressacas prolongadas ao longo de todo um século.

Nesses dias, eu era todo-ouvidos pros mares extintos, pros fantasmas e pros baianos que chegavam na capital para trabalhar na estiva. Na pedra do Sal joguei capoeira, andei na ponta dos pés e fui mestre-sala, logo eu. “Sabe quem nasceu ali?” – a mendiga deu uma freada nas palavras desconexas, apontou pruma antena no alto do Morro da Conceição, e disse na maior naturalidade: “Você”.

Da mesma forma, Amora, a hippie, encantou-se com meu lero-lero e logo me deu trela. Eu fingi que era tudo bem simples, muito natural: um amor romântico, fruto tropical. De acordo com a musiquinha (Roupa Nova?) grudenta dos oitenta que – já naqueles tempos – eu não suportava. Desde sempre desconfiei de hippies e almas do outro mundo. E, de repente, (nem tão de repente assim…) me transformo numa espécie de maluco barbudo que chamou a atenção de Amora devido à aura luminosa que eu carregava sobre meus cornos resplandecentes. Amora-fora-de-contexto jurava que eu refletia as sete cores do arco-íris e mais uma outra cor oculta que somente os grandes avatares eram capazes de irradiar em raros momentos de sincronicidade cósmica. Eu, hein?

Bem, já que ela pensava assim, me senti na obrigação de tirar uma casquinha. Mas, para tanto, teria de disfarçar minha ansiedade.Não podia chegar nela, e falar algo do tipo “chupa meu avatar aí, Amora”. Então, me aguentei, como se o convite dela – pra gente passar um final de semana em Lumiar – fosse a coisa mais natural do mundo. Ah, Beto Guedes. Ah, Amora. Uma garota de no máximo vinte anos, vendia origamis na Lapa, e tinha uma carapinha meio ensebada. Até aí, tudo bem. Eu não ia comer a carapinha, mas com certeza desfrutaria da bunda arrebitada e das tetas bicudas que fariam qualquer avatar irradiar sincronias cósmicas e muito esperma amiúde. Imaginei uma selva de pelos debaixo do suvaco e pentelheira farta na chavasca. Aquilo me deu um tesão sobrenatural, telúrico – algo condizente com minha condição de barbudo maluco da Lapa que conversava com fantasmas e não comia ninguém há pelo menos seis meses. Amora deve ter percebido a fissura, mas ficou na dela.

Arrumou uma pousadinha toda limpa pra gente passar o final de semana. A primeira surpresa. Eu estava preparado para pescar, moer cana e caçar lua, e no dia seguinte estender o sol na varanda, todo bicho-grilo feito Beto Guedes em 1978. Depois, ela quis saber qual era a “bandeira” do meu cartão de crédito. Aí falou do noivo. O sujeito trabalhava de recreacionista (leia-se bobo da corte e corno) nos navios da Linea C, e encerrou de vez minhas expectativas telúricas e pentelhúricas quando me chamou pra entrar na hidro. Máquina zero. Suvaco também era liso. Nenhuma penugem na canela, a buceta parecia um marisco triste vindo diretamente do mar de Peruíbe. Liso. Uma hippie depilada. Pensei em reclamar pro gerente da pousada, mas deixei pra lá. Afinal, o par de tetas (mamilos chocolate) apontava para o céu de Lumiar e estava lá sorrindo pra mim, o sorriso também depilado. Nem maconha ela fumava. Fazer o que, né?

Comi.

Em seguida, fomos dar umas bandas no centro de Lumiar. Ela costumava ir a um “espaço” que – às vezes – funcionava no quintal da Ideli, debaixo de uma jaqueira. Ideli era uma artista experimental amiga dela que, não bastasse ser artista e ser experimental, “interagia com espaços multidisciplinares”. Como se a xaropice da figura não coubesse em si mesma, Ideli tinha a capacidade de ser chata por metro quadrado e de – literalmente – ocupar os espaços. Para resumir, posso dizer que Ideli correspondeu ao meu ceticismo mais primário, e ocupou os espaços dela e minhas piores expectativas.

A gente pensa que está preparado. Que a sabedoria é uma condição adquirida junto com os calos que carregamos na alma. É nada. Logo que entramos no quintal da Ideli, identifiquei um cabeludo vestido de índio boliviano cantando “Açaí”, aquela mesma do Djavan; em seguida o cara sapecou Chico César e Legião Urbana – digamos que o filhodaputa não parou por aí. Nando Reis, Lenine. Tava frio pracacete e eu não aguentava mais ouvir o som de besouro-imã ou coisa que o valha, pedi licença e disse que ia meditar na mamma África que os pariu, e me pirulitei.

Noite de Lua cheia. De lua óbvia. Sou um cara paciente, e – segundo Amora – tenho uma aura gay com as sete cores do arco-íris e mais uma cor oculta e conluiada com o cosmos bordejando sobre meus cornos iluminados, ora, se o xamã boliviano tivesse enveredado por Almir Sater … ou, sei lá, Renato Teixeira, até que eu encarava. Mas aquele papo de que a gente tem que amar as pessoas como se não houvesse amanhã deu no meu saco, porra.

Lua cheia de merda, hippie depilada, o som do besouro-imã atazanando minhas ideias. Nessas horas sou mais Jorginho Bush e defendo o porte de arma. Bem, para voltar à pousada – fiz uns cálculos –, eu teria de atravessar a ponte e depois pegar à direita, em seguida passaria defrontre o ginásio de esportes e caminharia uns duzentos metros pela estrada de terra. Quando chegasse no depósito “Veleiro” de materiais de construção, era só virar à esquerda, atravessar uma segunda ponte, e seguir morro acima. Consegui chegar na primeira ponte, e logo que pus os pés do outro lado, tudo ficou quase branco. Parecia que alguém havia acendido os holofotes dos Campos do Senhor – desculpem a analogia: é que, não só na ocasião, mas agora também, o Chico César e o Djavan juntos não me permitiram/não me permitem achar imagem melhor. Senti muito frio. E uma cegueira branca. Todavia não era o frio da noite, era como se a luminosidade daquele clarão me envolvesse num manto gelado, que tinha mais a ver com a visão em si do que com a baixa temperatura da noite que … já não era noite. Me senti atraído por algo que, em vez de integrar e chamar para si, dissipava. Portanto, o contrário de uma atração. Tratava-se de uma gravidade enviesada. Como se a eletricidade do entorno e a temperatura externa fossem uma coisa só: juntas, essas duas forças agiam no meu corpo e me acalmavam quando – em tese – deveriam me deixar puto da vida. Na verdade, eu estava apavorado, mas não conseguia reagir a ponto de esboçar nada diferente de complacência e aceitação. Imobilidade. Como eu poderia dizer? Digamos que fui atraído por um estado de imponderabilidade e suspensão. Um imã que me indicava a direção oposta àquela que eu deveria seguir se quisesse voltar à pousada. Então, aos poucos, a luminosidade que quase havia me cegado foi cedendo a uma luz amarela, e depois âmbar, até que finalmente pude enxergar um objeto metálico em formato de ovo. Um ovo metálico. Conforme eu me aproximava do ovo e mais nitidamente o distinguia de todo o resto (passado,presente e futuro) perdia o controle sobre meu corpo. Como se eu, e todos os meus sentidos, tivéssemos sido condensados em visão. Eu era somente visão. De modo que tinha um espectro de 360 graus a meu dispor – as moscas enxergam assim. Se eu dissesse que me encontrava de cabeça para baixo e lúcido, qualquer um – inclusive eu – juraria que isso é papo de louco ou que, dessa vez, os efeitos do besouro-imã mais a mamma África teriam ultrapassados todos os limites do suportável. A ponto de me fazer optar por uma abdução (esse é o termo técnico “abdução”) em vez de dividir e/ou ocupar qualquer espaço multidisciplinar comandado por uma artista plástica sem talento e amiga de uma hippie depilada, bem, digo que foi mais ou menos isso que aconteceu. Apesar de toda contrariedade, eu que escolhi ser abduzido.

Só que lá dentro, depois que eles me permitiram sair do estado de suspensão, é que entendi exatamente as coisas do jeito que elas eram (ou deviam ser). Tudo muito precário. Chão batido, lenha e panelas de cobre penduradas nos janelões que davam prum lugar escuro e muito alto. Os alienígenas deviam estar tirando uma da minha cara quando me perguntaram se eu queria dar uma tapa no cigarro deles. Maconha? Não, apenas distração, fumo de corda mesmo. Parecia que eu estava no céu do Mazzaropi, naquele filme: “Jecão um fofoqueiro no Céu” (1977).

ETs Mazzaropi? E a tecnologia, perguntei.

Um deles, que vestia uma camisa esgarçada e tinha olhos puxados a partir de uma esclerótica branca e as pupilas lilás, me disse: “Quem gosta de apertar botãozinho é caipira”. O ET até que foi didático e paciente comigo, eu no lugar dele teria me mandado de volta pra jaqueira da Ideli. Explicou-me que a gente aqui na terra projetava as coisas de acordo com a precariedade de nossas ambições, daí as naves em forma de ovo metálico e o som do besouro-imã. Aquilo podia ser uma nave ou uma choupana. Eu que escolhia. E como a maioria dos meus semelhantes optou pelos seriados dos anos sessenta, então, aos nossos olhos, eles deviam ser aqueles seres ultra-inteligentes e donos de uma tecnologia infinitamente superior à nossa, tudo bobagem, me garantiu o ET – inclusive a esclerótica branca e as púpilas lilás.

Simples. Pelo fato de eu nunca ter dado muita bola pro George Lucas – ele me explicou – eu os projetava como Mazzaropis estelares. Uma nave pode ser movida a lenha ou a criptonita, ou a papel crepom.

- Nunca viu Fellini, mané?

- E os militares? – perguntei.

- Quiéquitem? – ele ria da minha cara.

- Roswell, Área 51. Nasa!

- Bobagem. Tudo bobagem. Ou você acha que nós, evoluídos tecnologicamente – o ET sacudia a pança de tanto rir – temos fetiche por fardinha?

- E a operação Prato?

Ele saltou do banquinho, e mudou de fisionomia. De repente,o Mazzaropi se transformou no general Figueiredo:

- Prefiro o cheiro de bosta de cavalo ao cheiro do povo!

Ele apontou pruma mesinha de fórmica. Sobre o móvel, uma Semp-Toshiba transmitia o desfile de 7 de setembro. Urutus na avenida. Hino da Bandeira. Autoridades no palanque, as mulheres dos generais faziam o contraponto aos Urutus, e usavam capacetes de laquê.

Então, o ET perfilou-se na minha frente, olhou nos meus olhos, e falou cuspindo fogo:

- Inquéritos policiais militares. Bases, hangares. Dragonas, patentes. Arquivos secretos e documentos ultraconfidenciais, homens de preto. Buuuuuuu!!!!.

O filho da puta me assustou. Voltou o Mazzaropi:

- Ô, sô. Num orneia, não. Vocês que inventaram a ordem, a disciplina, a hierarquia e a regrinha de três. A maluquice é de vocês.

- Eu? Eu não tenho nada a ver com isso, seu ET.

Tava na hora da merenda.

Ele sabia que mais ou menos eu compartilhava das ideias dele, antes mesmo do nosso encontro. Então, me ofereceu um bolo de fubá e passou um cafezinho num coador encardido. O melhor café que tomei na vida, registre-se. O ET Mazzaropi recomendou que eu voltasse a Ouro Preto, disse que eu tinha o privilégio de testemunhar a transformação de um sujeito – amigo meu que havia rejeitado a deserção – em santo: “Ele tá virando santo diante do seu nariz e de uma platéia maluca e distraída, a gente aqui fica zelando por aquele bebum”. Eu sabia que sim, e de quebra o ET me lembrou do Preto Velho, aquele do terreiro do Andaraí. Fiquei intrigado, como é que ele sabia da macumba no Andaraí?

- Eu sei, uai. Lembra o que ele disse?

Lembrei, mas não falei nada pro ET. Mesmo porque mudamos de conversa para tratar do mesmo assunto:

- Isso aí, meu filho. Vai em paz e diz pros seus coleguinhas lá de baixo que o mineiro só é solidário no câncer. E fala pro povo rancoroso pra não ralhar com a tia Nastácia. Aqui não existe botãozinho pra apertar, tá vendo?

Eu queria saber se o mundo ia acabar em 2012, se o Palmeiras cairia pra segundona outra vez, se a Ivete Sangalo era mesmo a reencarnação de Hitler, se o mundo espiritual tinha alguma relação com os ETs, por que o Chico Xavier usava peruca e pra qual sistema solar teriam ido os pentelhos de Amora, aquela hippie mequetrefe … Nesse momento, ele abriu um sorriso largo e desdentado, pitou o cigarrinho de palha e afagou o holograma do Batuque, um vira-latinha simpático que se aninhou sobre as nuvens do nosso planeta. A gente via a sombra do cãozinho atravessando cordilheiras, indo ao encontro de outras nuvens e se transformando em canções sofridas. “Coisa triste e bonita” – comentou o ET .

O puto do ET era o Mazzaropi cuspido e escarrado. “Servido?” Entornei um gole de uma amarelinha do outro mundo, brindamos o nascimento de um garoto que tinha tudo para ser uma espécie de Antonio Conselheiro da Vila Joaniza, ia depender somente dele. “Esse garoto pode mudar o mundo … mas se bobear vai ser recreacionista no Clube Med”, constatou o ET, meio que desconsolado e rindo de si mesmo. Eu acrescentei: “Recreacionista, e corno”.

Enchemos a cara, puta viagem legal. O convidei pra estréia da minha peça-punk, “Sobre os ombros dourados da felicidade” *, que aconteceria dali a 3 anos, no Reserva +, lá no Rio de Janeiro num 1º de outubro de 2012 (no problem: ele viajava no tempo) e lhe disse também que não o perdoaria se não dividisse comigo um filé encrenca no Planeta’s. A essa altura estávamos pra lá de alfa-centauro: “Planeta’s, sei sei. Encrenca no Planeta’s Terra” – ele se divertiu com o próprio trocadilho, e arrematou:

- Quando dá errado é que dá certo.

- E´?

- Claro que é, uai.

Guardo uma última lembrança. Quando o ET coça o dedão do pé, e diz p’reu desencanar que a vida engana, cacete!, ele citou Nelson Rodrigues,citou Reinaldão Moraes … e falou da macumba no Andaraí. Agora lembro:

- Anjo toco – disse o Preto Velho do Andaraí – “anjo toco não voa”.

Publicado originalmente no "congressoemfoco"

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