Opinião

'O povo não é bobo', lembra-se, Lula?

José Nêumanne
O ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência, Gilberto Carvalho, que é homem de confiança do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o mais próximo auxiliar da presidente Dilma Rousseff, já pontificou que o "mensalão" não terá influências maléficas sobre os candidatos do Partido dos Trabalhadores (PT) nas eleições municipais deste ano. Depois dele, o presidente nacional do partido do governo, Rui Falcão, também menosprezou eventuais prejuízos a seus militantes, porque o brasileiro comum estaria mais interessado na Olimpíada e no arrasa-quarteirão das 9 da noite na Globo, a telenovela Avenida Brasil. Um pode ter razão; o outro, não.

De qualquer maneira, se ambos raciocinam de forma correta, perde qualquer sentido a cruzada de Lula tentando convencer ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) a adiar o julgamento a pretexto de não "contaminar" o processo eleitoral. Ainda que se acredite na versão do ex-presidente de que ele tenha marcado um encontro com o ministro Gilmar Mendes no escritório do amigo comum Nelson Jobim para discutir o sexo dos anjos ou o que viria a paralisar Fabiana Murer na hora de saltar nos Jogos de Londres, não dá para negar o vídeo que Rui Falcão inseriu no site do PT fazendo o mesmo apelo. Se os debates no Supremo não prejudicam os petistas e o eleitor não está ligando para o que neles se debate, por que, então, se pretendeu adiá-los?

Teremos de esperar para saber se, no caso de as eleições serem disputadas antes de o julgamento terminar, os candidatos petistas serão prejudicados por uma condenação generalizada de seus militantes ou ajudados pela absolvição deles. Pelo andar da carruagem, não é improvável que o veredicto seja dado depois da consulta às urnas. Mas não é impossível - embora seja pouco provável - que, antes da decisão do STF, os eleitores votem sob influência do conhecimento adquirido com a divulgação dos fatos trazidos de volta a lume. E isso nada tem que ver com pressão da opinião pública sobre o Judiciário, certo?

Haja o que houver, o noticiário sobre a acusação do procurador-geral, Roberto Gurgel, e a defesa dos advogados dos 38 réus já pode trazer uma contribuição efetiva e muito rica para o debate institucional no Brasil. É salutar que se exija, como se exige, numa República tão assolada pelos surtos autoritários, o respeito ao indivíduo, que só é completo com a prática do amplo, geral e irrestrito direito à defesa, com base no ancestral favorecimento do réu pela dúvida, como preconizavam os romanos e o ex-presidente Lula, neste caso sendo o réu um fiel devoto da crença nele. Mas respeitar a presunção de inocência não é tornar dogmas argumentos da defesa e estigmatizar como diabólicos os da acusação.

Segundo pesquisa do Datafolha, 73% dos brasileiros acreditam na culpa dos réus. Isso significa, obviamente, que quase três quartos da população consultada pelo instituto entendeu a narrativa lógica e encadeada dos fatos que fizeram o ex-procurador-geral Antônio Fernando de Souza encaminhar o caso a julgamento e seu sucessor, Roberto Gurgel, formalizar a acusação. E também que não se deixaram impressionar por volteios retóricos e, às vezes, meramente semânticos com que os advogados tentaram desconstruí-la e até desmoralizá-la.

O Zé Mané da favela distingue com mais clareza do que os juristoides de plantão a diferença entre plena defesa e impunidade total. Se só 11% acham que, inculpados, os réus cumprirão pena em prisão, não é porque a quase totalidade acha que eles não mereçam punição, mas por conhecimento de causa sobre a justiça real a que todos têm acesso. Isso tem o lado positivo de confirmar o que os metalúrgicos sob comando de Lula bradavam nas greves do ABC: "O povo não é bobo". Mas também transmite uma inquietante sensação de consciência da impunidade, que se alastra pela sociedade. Quem acredita na culpa, mas não na pena, pode se perguntar: "E por que não eu?".

Rui Falcão - cujos companheiros do PT tentam impedir o uso do noticiário do julgamento na propaganda eleitoral e chegam ao ridículo de querer obrigar os meios de comunicação a trocar "mensalão" por Ação Penal 470 - está mais certo, pois, do que seu alter ego. Este aposta na Olimpíada, que acabou três meses antes do pleito, e na novela para desviar a atenção do eleitor dos "malfeitos" dos companheiros. Os dois juntos e Gilberto Carvalho devem ter tomado um susto quando descobriram que a crença na culpa de sua turma é semelhante à audiência do folhetim eletrônico e à indiscutível popularidade de Lula. E este se assustará ainda mais ao perceber que, do rebanho fiel que lhe devota amor e fé, quatro em cada cinco entrevistados aceitam a tese defendida pelos procuradores-gerais de que foi dinheiro público que comprou apoio político. E mais grave: só 7% dizem aceitar a hipótese de que foi "só caixa 2".

Dificilmente a pesquisa mudará o destino dos réus, pois juízes experientes como os ministros do STF não deverão se deixar influenciar pela opinião da massa inculta e distante. Cada um dos 11 teve sua convicção formada ao longo dos sete anos de debate em torno do momentoso escândalo. Mas, ao registrar o pulso do brasileiro comum, a pesquisa presta o grande serviço de mostrar que o cidadão pode sentir-se indefeso e impotente diante de um sistema político que finge representá-lo e o despreza, mas não se deixa enganar com facilidade.

E caberá aos supremos julgadores não perderem de vista a oportunidade de devolver ao cidadão o protagonismo que o regime diz que ele tem, mas na prática lhe nega. A missão do STF, a ser cumprida antes ou depois das eleições, será provar que, como o brasileiro comum, não se deixa lograr por lorotas políticas e chicanas jurídicas que criam um Dirceu inválido na chefia da Casa Civil e um Delúbio inocente útil nas mãos de um espertalhão. Sob pena de verem Papai Noel descer do trenó na Praça dos Três Poderes para apresentar as alegações finais.

* JORNALISTA E ESCRITOR,  É EDITORIALISTA DO 'JORNAL DA TARDE'

Original aqui

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