Coluna do Mirisola

O mundo aos seus pés

Para meu amigo Ricardo Lísias

Marcelo Mirisola
Para mim, o diabo é uma criatura frágil e necessariamente apagada, que ri para dentro e jamais é expansivo, ele não tem nada de exuberante. Embora seja luminoso.

Quando criança, teve de  usar colete ortopédico e não desgrudava de sua lancheira, lá dentro uma pêra carinhosamente embrulhada em papel celofane e uma Ana Maria sabor baunilha, mais um suco de caju. O fato de ninguém saber quem preparava o lanche do diabo o afastava dos outros garotos. Um cara que mistura suco de caju com Ana Maria-baunilha não pode ter mãe. Ossudo. Sim, os ossos e as demais articulações do capeta são proeminentes, porém seus dentes são pequenos e amarelados, cerradinhos.

O diabo fala baixo e às vezes deixa escapar um leve sotaque do sul de Minas, ele o  induz ao aconchego e faz com que você se esforce para seduzi-lo, quando, na verdade, ele é quem o seduz timidamente, como se ele fosse a parte frágil, de modo que você pensa que está fazendo um bem em tirá-lo do isolamento e chamá-lo para si. Erro capital.

A compaixão é instrumento de manipulação do capeta, digo, a falsa compaixão. Nesse ponto, quando você acredita que está sendo bacana e solidário, sua alma já foi pro beleléu. Os caras legais de hoje são os crápulas de amanhã. Isso é regra. A traição é cláusula pétrea no evangelho do diabo. Haja vista que a linha que separa a compaixão do egoísmo é muito tênue. Ao contrário do que sugere o diabo, você não é um cara generoso, mas um egoísta filho da puta, e mesmo que você não tenha se dado conta disso, ou seja, mesmo com a alma chamuscada e ainda que exista um fiapo de sinceridade em seu gesto, isso não é o suficiente. É vago, é quase nada. O beato tem um longo caminho a percorrer antes de alcançar a santidade. Isso não é pra qualquer um. Irrelevante o fato de que você tenha vislumbrado a eternidade. Trata-se apenas de um lapso, um déjà-vu, algo desprezível – especialmente no seu caso –  enfim, é uma titica para se impugnar a misericórdia e o perdão verdadeiros. Esqueça, meu chapa.

Ou faça um exame de consciência, e verificará que sempre usou o perdão em benefício próprio. Né ?

Um dia, claro que por inspiração do diabo, você tem a certeza de que é diferente dos outros animais que gritam, vivem e agonizam de coração aberto. Não é um sentimento de todo falso, mas é outro golpe do capeta. Na realidade, a única coisa que o difere, ou melhor, que os diferem e os excluem (você e o diabo, que agora são uma dupla) da maioria dos agonizantes, é a temperatura de seus corpos que é um pouco mais baixa, e a explicação para esse fenômeno é um tanto obvia: assim como Zelda & Scott, Butch Cassidy & Sundance Kid, Você & o Pé Quebrado, enfim, vocês sempre estiveram mortos e a essência de vocês é fria, especialmente podre e maléfica.  Enquanto isso – digamos que “no intervalo” –  a vida se esvai e perde o encanto, e vocês  escrevem e lêem os livros um do outro, fazem músicas e se divertem com gibis e vídeo-games, vocês são insuportavelmente talentosos, chatos e mimados.

Ao contrário do que vocês imaginam, não há nada de especial em seus talentos, habilidades e idiossincrasias, uma vez que seus tesouros são garimpados do fundo da lama, do esgoto dos ressentimentos e da solidão mais torpe, de tal maneira que uma hora o mal eterno, ou aquela substância oleosa da qual vicejam as flores negras, a mesma substância que constitui o intrínseco e da qual você e o diabo são partes indissociáveis, assim como os homicídios e as hecatombes um dia irrompem dos lugares mais insuspeitos, enfim meu chapa, num belo dia, ao atravessar uma rua ou ao cumprimentar o porteiro do seu prédio com a simpatia que lhe é peculiar, assim despercebidamente, o mal eterno vai eclodir das profundezas e reluzirá aos olhos dos incautos como um diamante perfeito e, nessa hora, ah, nessa hora vai ser tarde demais, pois o engano estará definitivamente cristalizado, transformado em virtude não só para vocês, mas para o mundo.

Vocês terão o mundo aos seus pés. Num dia, assassinos celerados, noutro juízes acima de qualquer suspeita. E esse dom, vá lá, esse dom para fomentar guerras e negociar a paz e que é algo que faz parte da natureza implacável de vocês, será exercido na plenitude. Onde houver o armistício, haverá a semente de outra guerra. As listas que contém seus nomes e as homenagens correspondentes serão eternas, bem como a condição maligna de vocês também o é, malditos demônios, vocês têm as marcas do indulto e da inteligência estampadas em vossos cornos e uma coisa vos digo, somente fracassarão aqui na terra se quiserem, e se isso acontecer – se numa remota hipótese a humanidade os afligir por alguns instantes – não será porque o mal os abandonou, mas por vaidade, premeditação e orgulho, ah, vocês saberão encontrar a melhor forma de manipular o desespero daqueles que incondicionalmente os amam e de condená-los ao ódio, e a razão sempre estará, na exata medida entre o ódio e o amor, dos vossos lados, razão invertida e cristalina, desumana e mortífera, de modo que vocês darão amor (sim, amor genuíno!) em troca de mentiras esplendorosas e o fruto desse mal será arrancado de suas entranhas mais abjetas , porque o mal só pode brotar do mal:

-  Eis a ignominiosa flor do pântano, negra e pútrida, igual a vocês, podre por dentro e luminosa, colhida.

Só para terminar, gostaria de fazer um alerta aos desavisados. Os demônios ejaculam a partir dos cotovelos de seus parceiros. Assim é que eles se reproduzem, assim que amam e se reconhecem, malditos sejam. Para toda a eternidade, amém.

Sobre o autor

Marcelo Mirisola
* Considerado uma das grandes revelações da literatura brasileira dos anos 1990, formou-se em Direito, mas jamais exerceu a profissão. É conhecido pelo estilo inovador e pela ousadia, e em muitos casos virulência, com que se insurge contra o status quo e as panelinhas do mundo literário. É autor de Proibidão (Editora Demônio Negro), O herói devolvido, Bangalô e O azul do filho morto (os três pela Editora 34) e Joana a contragosto (Record), entre outros.

Outros textos do colunista Marcelo Mirisola.

Publicado originalmente no "congressoemfoco"

Twitter

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Mosca-dragão

Pegoava?

Jundu