Crônica
Família
Sidney Borges
O som de barata esmagada fez com que tia Julieta pigarreasse, a reunião teria uma trégua, a coisa estava ficando tensa. Dividia-se o butim do falecido tio Joaquim, todos queriam o filé mignon, eram muitos, o boi não tinha tanta carne nobre, alguém haveria de ficar com cascos e chifres. Aos 94, alheio, vovô prescrutava cantos em busca das cascudas.
No sofá, sozinho e choroso, tio Abílio lamentava a morte do pai. Na hora de reivindicar sua parte disse que não queria nada além do São Benedito da cômoda da tia Zuleika. E completou: tenho muita fé naquele santo, rezo para ele todos os dias.
Silêncio na sala, só se ouvia o chiado da chaleira vertendo vapor na cozinha.
Tio Abílio era um bom homem, não fazia mal a ninguém, apenas bebia um pouquinho além da conta.
A reunião continuou até o momento em que Silvinha surgiu com um objeto escuro nas mãos.
Tio, é este o São Benedito?
Momento de suspense e exaltação, tio Abílio com os olhos mareados ajoelhou-se em frente ao santo. E puxou um padre nosso. Depois uma ave maria. A família acompanhou. Todos rezaram para o São Benedito, na verdade um frasco de perfume "Noite", da Avon.
Da cozinha chegou o aroma de café recém coado, sinal para o encerramento da reunião.
Dizem que não importa o santo, o que vale é a fé.
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