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O coração do capeta

Dedicado a Naomi Klein, onde quer que você esteja

Márcia Denser
Esta semana recebi a newsletter completa de Naomi Klein, Occupy Wall Street: The most important thing in the world now, esta ativista política e pesquisadora canadense, que apareceu bombando a partir dos anos 90 com o calhamaço NO LOGO, e de quem sou tiete de longa data (tomo meus leitores e muitas colunas por testemunho). No Logo foi uma revolução e uma revelação: uma superpesquisa atestando exaustivamente a idéia de branding como central para a globalização na conquista de corações e mentes (das almas, seria o termo preciso) em todo o planeta – “agora, o que se vende – e o que você compra – não são coisas, objetos, mas modos de vida, conceitos, estilos, grifes, assinaturas”. Ou seja, porra nenhuma. Detone-se a produção. Literalmente.

Mas falhando (ou não) o MacWorld (ou a MacJihad, dá na mesma), recorre-se às armas (até porque Pizza Hut e Wall Mart já vem no mesmo kit com as Uzis, M-16, AK-47 – destruição & salvação embrulhadas pra presente, com os melhores votos de tio Sam), ao “bomb now, die later”, ao arrocho, à neo-colonização das populações do planeta via financeirização, donde o capitalismo de cassino, de vudu, de compadres – estratégias manjadíssimas empregadas pelos EUA e subparceiros ­ – a partir de 2000 (pós-guerras do Golfo, Afeganistão, Iraque – nesta ordem), daí que Naomi retorna em 2008 com outro livro, outra pesquisa capital, A Doutrina do Choque – a ascensão do capitalismo de desastre (Rio, Nova Fronteira). Neste, Klein percorre as ruínas decorrentes dos choques econômicos (os PAE – Planos de Ajuste Econômico), impostos pelo FMI e Consenso de Washington, do Chile à Polônia, da Argentina à Inglaterra, da Rússia ao Iraque, traçando o mapa do capitalismo do desastre.

Uma vez que para os adeptos de Milton Friedman & asseclas neoconservadores, as ditaduras pecavam “apenas” por alguns abusos nos direitos humanos, “por um zelo excessivo pela ordem”, como se a imposição do modelo da Escola de Chicago não implicasse em duras perdas às populações dos países-alvo. Para dizer o mínimo.

Fugindo das soluções fáceis e vícios ideológicos, NK vai fundo nas questões políticas, sociais, econômicas, traçando sólidos nexos entre as mesmas, perseguindo sua lógica oculta, expondo-lhe a retórica de meia tigela, a conversinha pra boi dormir alardeada pela mídia hegemônica, desde as enchentes de New Orleans às devastadas praias do Sri Lanka pós-tsunamis, passando por zonas verdes, vermelhas e ground-zeros.

Então, neste outubro, Naomi reaparece, naturalmente em Wall Street, e naturalmente do lado errado da sorte. Na Liberty Plaza, dá seu recado emocionado, levantando questões extremamente pertinentes, embasadas em sua longa militância, sua experiência, sua milhagem imbatível por justiça social.

Naomi: “Se há uma coisa que sei é que o 1% adora uma crise. Quando as pessoas estão desesperadas e em pânico, e ninguém parece saber o que fazer, este é o momento ideal para nos empurrar goela abaixo a lista de políticas pró-corporações: privatizar a educação e a seguridade social, cortar os serviços públicos, livrar-se dos últimos controles sobre o poder corporativo. Com a crise econômica, isso está acontecendo no mundo todo. Só existe uma coisa que pode bloquear essa tática e, felizmente, é algo muito grande: os 99%. Esses 99% estão tomando as ruas, de Madison a Madri, para dizer não, nós não vamos pagar pela sua crise. Esse slogan começou na Itália em 2008. Ricocheteou para Grécia, França, Irlanda e finalmente chegou a esta milha quadrada onde a crise começou. Por que eles estão protestando? perguntam-se os comentaristas da TV. Mas o mundo responde com outra pergunta: por que vocês demoraram tanto? E, acima de tudo: bem-vindos!”.

“Muitos já estabeleceram paralelos entre o Ocupar Wall Street e os protestos anti-globalização de Seattle, em 1999. Foi a última vez que um movimento descentralizado, jovem e global fez mira direta no poder das corporações.  Contudo, há diferenças importantes. Por exemplo, nós escolhemos as cúpulas como alvos: a Organização Mundial do Comércio, o Fundo Monetário Internacional, o G-8. Mas cúpulas são transitórias por natureza, só duram uma semana. Isso fazia com que nós fôssemos transitórios também. Aparecíamos, éramos manchete no mundo todo, depois desaparecíamos. E na histeria hiper-patriótica e nacionalista que se seguiu aos ataques de 11 de setembro de 2001, foi fácil nos varrer completamente do mapa.”

“O Ocupar Wall Street, por outro lado, escolheu um alvo fixo. E ninguém estabeleceu uma data final para nossa presença aqui. Isso é sábio: só quando permanecemos, assentamos raízes. Isso é fundamental. É um fato da era da informação: muitos movimentos surgem como belas flores mas morrem rapidamente. E isso ocorre porque não criam raízes. Não têm planos a longo prazo para se sustentar. Por isso, quando vem a tempestade, são varridos. Mas a grande diferença é que, em 1999, encarávamos o capitalismo no cume de um boom econômico alucinado. O desemprego era baixo, as ações subiam. A mídia estava embriagada com o dinheiro fácil. Naquela época, tudo era empreendimento, não fechamento. Nós apostávamos que a desregulamentação por trás da loucura cobraria um preço. Que ela danificava os padrões laborais. Que ela danificava os padrões ambientais. Que as corporações eram mais fortes que os governos e que isso danificava nossas democracias.”

“Enquanto rolavam os bons tempos, a luta contra um sistema econômico baseado na ganância era algo difícil de vender (por incrível que pareça). Pelo menos nos países ricos. Dez anos depois, parece que já não há países ricos. Só um bando de gente rica. Gente que ficou rica saqueando a riqueza pública e esgotando os recursos naturais ao redor do mundo. A questão é que hoje todos são capazes de ver que o sistema é profundamente injusto e está cada vez mais fora de controle. A cobiça sem limites detona a economia global. E está detonando também o mundo natural. Estou falando de mudar os valores que governam nossa sociedade. Essa mudança é difícil de encaixar numa única reivindicação digerível para a mídia, e é difícil descobrir como realizá-la. Mas não é menos urgente por ser difícil.”

Oi, voltei, sou eu novamente: de fato, olhando retrospectivamente 1999 – especificamente os esparsos protestos antiglobalização de Seattle – e hoje, 2011 – doze anos depois – e o movimento Occupy Wall Street, percebo que os 99% do planeta finalmente atingiram o coração do capeta. Evidente que ele vai chiar de todas as formas possíveis e imagináveis. Mas nós chegamos lá.

Sobre o autor

Márcia Denser
A escritora paulistana Márcia Denser publicou, entre outros, Tango fantasma (1977), O animal dos motéis (1981), Exercícios para o pecado (1984), Diana caçadora/Tango Fantasma (Global,1986, Ateliê, 2003,2010, 2a.edição), A ponte das estrelas (Best-Seller,1990), Caim (Record, 2006), Toda prosa II - obra escolhida (Record, 2008). É traduzida em nove países e em dez línguas: Alemanha, Argentina, Angola, Bulgária, Estados Unidos, Espanha (catalão e galaico-português),Holanda, Hungria e Suíça. Dois de seus contos - "O vampiro da Alameda Casabranca" e "Hell's Angel" - foram incluídos nos Cem melhores contos brasileiros do século, organizado por Ítalo Moriconi, sendo que "Hell's Angel" está também entre os Cem melhores contos eróticos universais. Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, é pesquisadora de literatura e jornalista. Foi curadora de literatura da Biblioteca Sérgio Milliet em São Paulo.

Outros textos do colunista Márcia Denser.

Publicado originalmente no "congressoemfoco".

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