Coluna do Mirisola

A Maçã é mais embaixo

"Fátima Bernardes e William Bonner disseram que Steve Jobs era um gênio. Eu queria mesmo era saber quem é que inventou a pipoca de microondas"

Marcelo Mirisola
Notei que alguma coisa não combinava com a realidade, quando dona Marietta, a maior crítica literária do Brasil (minha mãe que me sustenta até hoje) garantiu que Steve Jobs era um gênio. Fátima Bernardes e William Bonner chancelaram a genialidade do cara durante mais da metade do Jornal Nacional, incluindo um discurso onde Jobs dichavava* tópicos de algum manual de auto-motivação – “viva o dia de hoje como se fosse o último…” – para uma platéia de formandos metidos em becas do século dezoito. De um lado, o homem que inventou o futuro, do outro jovens brilhantes… numa colação de grau (!).  Uma combinação intrigante, para dizer o mínimo.

Segundo William Bonner, a oratória de Jobs somente poderia ser comparada à peça de acusação de Cícero contra Lucio Sergio Catilina, datada de sessenta e três anos antes de Cristo. Jobs e sua palestra motivacional “marcaram a história da humanidade” – o mundo convenceu-se disso e minha mãe que não usa nem telefone celular, também. Se a Fátima Bernardes falou e se Jobs está no céu da Veja sentado numa nuvem de maçã, está falado. Né?

Eu só queria saber quem é que foi que inventou a pipoca de microondas. Porque esse gênio da humanidade também deve ter proferido um discurso histórico em Harvard para uma platéia de universitários super-dotados metidos em becas do século dezoito… “O homem” – dizia Jobs -: “tem que ser o lobo de si mesmo”. Prefiro as amanteigadas. Meu amigo Pagotto bem definiu a coisa: “ A pipoca de microondas é uma experiência estética-sinestésica”.

Um acontecimento quase sobrenatural, eu diria. Acompanhar o saquinho a rodopiar, inchando lá dentro ao mesmo tempo em que o cheiro de manteiga se espalha pela casa, ah, isso não tem preço; quero dizer, tem sim, mas é muito barato, uns 4 reais.  Não bastasse, depois de 3 minutos, o que antes era milho … vira pipoca! Um milagre! Abrimos o saquinho e aquele vapor luxuriante embaça as lentes e as portas de nossas percepções de gordos e nerds juramentados – porque, em última análise, esse foi o legado de Jobs. Ele nos transformou numa geração de nerds comedores de pipocas de microondas.

Eis o mundo paralelo que passou / passa despercebido diante de nossos focinhos plugados 24 horas por dia. Nenhuma capa da Veja, nem um editorialzinho sequer do Extra, ninguém se manifestou: a humanidade não sabe se o inventor da pipoca de microondas está vivo ou morto. Vai que o homem é um orador genial: “Não deixe de acreditar naquilo que você ama, no amor e no trabalho os pontos vão se ligar”.

Ah, a tecnologia. Lembro quando apareceu o Corcel II. Os deslumbrados da época diziam que o design daquele carro revolucionaria a indústria de carroças nacionais. Em meados dos 70 a última palavra em tecnologia era o carburador duplo** usado no Copersucar de Emerson Fittipaldi. Ê diabo! Quanta tinta e quanta ladainha do Expedito Marazzi tive que engolir por conta desse carburador duplo … depois, viriam os video-cassetes, as cápsulas de bronzeamento artificial e os peitos de silicone, a  injeção eletrônica e o  Macintosh, o iPod,  iPhone e o iPad, todos – vejam só –  primos-irmãos do lampião de gás e descendentes diretos da lenha que alimentava as caldeiras das locomotivas e que, ainda hoje, queima, ah, bendita lenha, nos fornos das pizzarias paulistanas aqui do Bixiga… bem, e daí? -  perguntaria o leitor.

Daí que você que acredita que o Steve Jobs é um gênio, há de concordar que, sob esse aspecto, a lenha tem muito mais serventia e é muito mais real do que aquele velho Macintosh revolucionário que, hoje, não presta sequer para ser jogado na lata do lixo: “A morte” – bradava Jobs, em Stanford: -  “é a melhor invenção da vida” –  menos pros Macintosh, eu diria ….

Outra coisa vos digo, vós que venerais Steve Jobs: daqui a três anos a lenha continuará queimando por aí e será tecnologicamente muito mais avançada do que qualquer outro eletrodoméstico criado pelo sr. Jobs – o homem que inventou o futuro, segundo William Bonner.

Ah, a tecnologia. No ano de 1972, quando Fittipaldi foi campeão de Fórmula 1, eu tinha seis anos de idade e já havia declinado do futuro que Jobs ia ajambrar para a humanidade 30 anos depois. E o melhor, já havia feito minhas escolhas pro resto da vida – saudades do lombo da Gessy, minha babá.

Jobs é um gênio! Em duas décadas, além do iPhone 4 e de todas as bugigangas que inventou, Jobs , o anjinho sentado na maçã de nuvem na capa da Veja – como bem lembrou Arnaldo Bloch, “ também bloqueou acessos, fez acordos de exclusividade com operadoras, brecou o download de aplicativos que confrontassem seus interesses. Criou, com a linha de iPhones, um frisson de consumismo galopante que tem muitos paralelos com o que Bill Gates ( outro messias da tecnologia) implementou com seu Windows, fazendo dos seus usuários, reféns.”.

E o pior de tudo, agora os discursos de Jobs entraram para a história da civilização ocidental. Isso que dói. Nem Cícero, nem Demóstenes (o grego, e não o senador do DEM), tampouco nosso Lula, o estadista sem frase, ninguém é páreo para São Nerd.

Sinceramente?  Nem se Steve Jobs tivesse materializado (sem trocadilhos)  o teletransporte do dr. Spock, nem assim, eu me arriscaria a compará-lo à unha micosada de um Fellini, por exemplo.

Senão vejamos. Qual seria a utilidade do teletransporte? Nada mais nada menos que levar dona Solange de Pirituba pro Jabaquara. A mesma coisa que um Corcel II fazia em 1976, com muito mais charme e vento no rosto – diga-se de passagem. Enfim. Tecnologia é algo que se presta para nos servir, e não o contrário.  Eletrodoméstico é eletrodoméstico. Botãozinho é botãozinho. Uma noite esburacada no céu de um Café de Arles pintada por um Van Gogh é um Van Gogh. Percebem a diferença?

O deslumbramento mundial com a vida e a obra de Steve Jobs não passa de um sintoma de atraso, carência das pessoas que desaprenderam a se comunicar olhando nos olhos, introversão levada às raias da histeria, e breguice mesmo pra neguinho dar pinta de século XXI no puxadinho do aeroporto. Quem pensa diferente, que me responda: o cinema é outro por causa de Toy Story ? A música melhorou por causa do Steve Jobs?   Alguma nova Billie Holiday brotou de/ou devido a um iPod inventado por ele? … Ou foi a Ivete Sangalo quem se beneficiou dessa bugiganga toda?

*Dichavar. Essa palavra não existe no Aurélio. Consta que o homem do dicionário não era chegado na marafa. Nem eu. Em todo caso, para o bem da verdade, cabe esclarecer que “dichavar” é um termo que significa separar as partes da maconha que lhe dão gosto ruim, para, a partir daí, preparar um baseado de responsabilidade.

**Se não foi o carburador duplo, foi o eixo horizontal da emocinética ou algo que o valha, tanto faz… Expedito Marazzi não dava trégua.

Sobre o autor

Marcelo Mirisola
Considerado uma das grandes revelações da literatura brasileira dos anos 1990, formou-se em Direito, mas jamais exerceu a profissão. É conhecido pelo estilo inovador e pela ousadia, e em muitos casos virulência, com que se insurge contra o status quo e as panelinhas do mundo literário. É autor de Proibidão (Editora Demônio Negro), O herói devolvido, Bangalô e O azul do filho morto (os três pela Editora 34) e Joana a contragosto (Record), entre outros.

Outros textos do colunista Marcelo Mirisola.

Publicado originalmente no "congressoemfoco".

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