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Agora é oficial: enfim, o político apolítico

“Pensando bem, essa política sem política sempre existiu no país, é a que mais nos caracteriza. E pra não perder o mote publicitário: é nossa marca registrada”

Márcia Denser
Nesses tempos burros e pós-ideológicos no Brasil e no mundo, quando ninguém lembra nem sabe nada, (aliás, não só não sabe como tem raiva de quem sabe), não é só a política que cria, alimenta e enfia bobagens (vide campanha anticorrupção forjada pelo Instituto Millenium, a neo-doutrina Kassab da política sem política, a ser tratada mais adiante) goela abaixo das pessoas, como a própria publicidade  - criativíssima há uns 30/40 anos, a de tevê era melhor do que os programas, houve tempo em que os mais informados, intelectuais, até donas de casa adoravam  assistir aos comerciais! – talvez refletindo a mediocridade generalizada, tornou-se simplesmente terrível, um tesouro inesgotável a prodigalizar burrice e ignorância infinitas.

A começar dos comerciais e terminar nos trailers dos próximos filmes: nada mais terrível, tenebroso, imbecil. Não me conformo que pago quase quatrocentos reais entre telefone, internet e tevê a cabo com o objetivo único e exclusivo de me emputecer!Por exemplo, um dos comerciais primorosos dessa linhagem é aquele da Volkswagen que diz que “Alemanha e Brasil têm muito em comum”: não só incorre num “absurdo conceitual”, como o repete dezenas de vezes por dia na cabeça do consumidor, o tal cidadão que afinal se rende e acaba acreditando nisso.

A propósito, lembrando Hitler: uma mentira repetida zilhões de vezes vira verdade.

Senão, vejamos: a Alemanha dominou o mundo por duas vezes, se reerguendo das cinzas da guerra; por outro lado, nas artes (a exemplo da música com Bach, Beethoven, Mozart, só para lembrar esses três), na filosofia (Kant, Hegel, toda a Escola de Frankfurt), na política (Marx), na psicologia (Freud, Jung), pra não falar da ciência (Einstein), ou seja, a cultura e o pensamento alemães constituem o que há de mais relevante no mundo ocidental desde a Idade Média até a Modernidade. Tive um professor que costumava dizer que a “a civilização é francesa (os costumes, as boas maneiras, a perfumaria, a moda, enfim), mas a cultura (a “kultur”) é alemã”.

Certo, a Alemanha teve Hitler e perpetrou o Holocausto judeu – o que significa que um povo com tantos luminares só pode projetar uma sombra escuríssima – apenas para atender as tais leis do equilíbrio que regem todos os campos da natureza humana ou não.

Agora, que mal lhe pergunte, o que o Brasil teria a ver com a Alemanha? Para começar, nosso povo não conhece a guerra – aliás, como já foi dito e repetido aqui, não se manda para a guerra cidadãos sem direitos. Historicamente sem direitos, ergo, sem cidadania. E ninguém irá me convencer que “alemão é louco por automóvel” – só se for pra VENDER seus automóveis – projetados entre os mais inteligentes e eficientes do mundo – para um mercado consumidor, ou seja, os trouxas do mundo inteiro, sobretudo da América Latina, que imaginam poder usar automóveis indefinidamente como se o fim dos combustíveis fósseis não tivesse data e seus únicos usuários já não fossem marcados (entre os quais NÃO estamos incluídos, of course).

Mas, ao menos para consumo interno (qual é o intelectual com algum senso de ridículo que se atreveria a divulgar isto lá fora sem se suicidar academicamente?),  o Brasil tem dado contribuições interessantíssimas na área política, a exemplo da doutrina Kassab. Citando o engraçadíssimo artigo do Gilberto Maringoni (Carta Maior), o atual prefeito paulistano criou um mote genial para o PSD (Partido Social Democrático): “Não é de esquerda, nem de direita e nem de centro”. O PSD surge como situação em 18 estados, em coligações que abrangem o PT, o PMDB, o PSDB e o PSB. Ou seja, com todo mundo e em toda parte, pouco importando quem esteja no comando: o que importa é estar por cima!

Político apagado até ser reinventado por José Serra, que o escolheu para vice-prefeito na sua chapa em 2006, Kassab deixa de ser uma expressão local para fazer articulações em nível nacional. Suas possibilidades só aumentaram diante da virtual falência dos partidos de direita no Brasil (a propósito, o DEM, de onde saiu Kassab e cujo mentor foi nada mais nada menos que o próprio Jorge Bornhausen. E este Kassab que é tão Kassab que considera tal informação um dos pontos culminantes da biografia de himself! – ou seria himsifu?)

Mas a questão está em definir que tipo de projeto poderia integrar setores que, teoricamente, teriam interesses díspares: como unir especuladores, empresários, a turma do agronegócio exportador, a nata do movimento sindical, os trabalhadores sem terra e os miseráveis do país?

A representação tradicional da direita brasileira – PSDB, DEM e PPS – ficou sem discurso, sem bandeira e, pior, sem base social. Ou seja: sem legitimidade. Seu eleitorado tradicional definhou. Os setores mais pobres e desorganizados mudaram o voto com a melhoria do padrão de vida. A essa direita, que não vive longe da máquina pública, dos financiamentos e dos cargos, restou uma única saída: aderir ao governo.

Segundo Maringoni: “O PSD é a ponte para a adesão sem culpa e sem turbulências. É uma espécie de câmara de descompressão, que adapta interesses e amolda demandas. Mais do que o PMDB, que é ao mesmo tempo situação e oposição, o PSD pode ser a métrica da elasticidade de propósitos, sem que isso salte muito à vista. O fato é que o mote de Gilberto Kassab parece ter contaminado a ação oficial. Tudo funcionará se ninguém fizer marola. E uma das marolas significativas pode ser representada pela apuração dos crimes da ditadura na Comissão da Verdade. Não apenas vários políticos do regime militar seguem na ativa, como setores do empresariado, que financiam campanhas eleitorais de diversos partidos, apoiaram e financiaram a tortura. Se for fundo na apuração do passado, a Comissão vai mexer no presente”.
Assim, é necessário monitorar seus passos, restringir suas atribuições, limitar suas iniciativas e dispersar seus objetivos para que suas conclusões não sejam incômodas, observa ele. Tenta-se fazer dela o que Slavoj Zizek fala sobre os novos tempos (e que já apontei em outras colunas):

“No mercado atual, encontramos uma série ampla de produtos desprovidos de suas propriedades malignas: café sem cafeína, cremes sem gordura, cerveja sem álcool… e a lista continua: que tal sexo virtual enquanto sexo sem sexo; a doutrina de Colin Powell da guerra sem baixas, enquanto guerra sem guerra, a redefinição contemporânea da política como arte da administração especializada, enquanto política sem política?”

Analogamente, a idéia seria implantar uma Comissão da Verdade sem “propriedades malignas”. Uma comissão que não acuse, não incomode e não puna. Uma comissão que siga o exemplo do PSD e não crie problemas à esquerda, à direita ou ao centro. E que tudo fique por isso mesmo.

Aliás, pensando bem, essa política sem política sempre existiu no país, é a que mais nos caracteriza. E pra não perder o mote publicitário: é nossa marca registrada (o que, por si só, já seria o bastante para nos tornar tão diferentes dos alemães – a bem dizer, não só dos alemães, porra!). Que no zero-à-esquerda de Gilberto Kassab finalmente encontrou seu representante ideal.

Sobre o autor

Márcia Denser
A escritora paulistana Márcia Denser publicou, entre outros, Tango fantasma (1977), O animal dos motéis (1981), Exercícios para o pecado (1984), Diana caçadora/Tango Fantasma (Global,1986, Ateliê, 2003,2010, 2a.edição), A ponte das estrelas (Best-Seller,1990), Caim (Record, 2006), Toda prosa II - obra escolhida (Record, 2008). É traduzida em nove países e em dez línguas: Alemanha, Argentina, Angola, Bulgária, Estados Unidos, Espanha (catalão e galaico-português), Holanda, Hungria e Suíça. Dois de seus contos - "O vampiro da Alameda Casabranca" e "Hell's Angel" - foram incluídos nos Cem melhores contos brasileiros do século, organizado por Ítalo Moriconi, sendo que "Hell's Angel" está também entre os Cem melhores contos eróticos universais. Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, é pesquisadora de literatura e jornalista. Foi curadora de literatura da Biblioteca Sérgio Milliet em São Paulo.

Outros textos do colunista Márcia Denser.

Publicado originalmente no "congressoemfoco"

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