Das letras...

Notas para um escritor voltar a escrever

"Escrever sem um plano definido, sem premeditar tramas e histórias até porque ainda não sei se o quero dizer é o que precisa ser dito: ambos terão de ser uma só e a mesma coisa"

Márcia Denser
Impor-se uma rotina todo dia, ficar diante da tela em branco, marcar um horário, agora, que horário? Pela minha rotina cheia de rituais, vai ter que ser à tarde, digamos das 15 às 16 horas (hoje, dia zero, estou começando às 14h30). Não produzir nada ou (que merda de palavra essa, “produzir”, mas foi incorporada definitivamente porque, do contrário, que verbo usar? escrever? fazer? elaborar? – essa é horrível! – sempre tive problemas de dar um verbo para o ato de fazer as coisas, de forma que produzir é o menos pior, salvo minha repulsa ao fato dele aludir a servidões trabalhistas, mas que porra, vamos parar com essas antipatias difusas, e por outro lado, parar com intuições é ainda pior, de modo que foda-se!) produzir isso aí, que acaba inevitavelmente ficando entre parênteses.

Então me pergunto: o abuso dos parênteses seria mania de digressão ou uma estranha forma de dizer o mais importante: marginalizar a essência ? Porque ultimamente em tudo o que escrevo, quando escrevo , o texto não flui livremente pelo leito principal, mas se encaminha inevitavelmente (outra vez) para afluentes onde se enreda e enreda e retornar é o diabo, pois significa duas coisas: 1) abandonar o enredamento que ia dar um enredo legal, só que se desdobrando para muito além e fora do assunto principal, o que exigiria muito espaço, tempo ou então que talvez eu parasse com isso;  2) voltar ao tema dá branco, empobrece a coisa toda, porque sinto que algo importante reiteradamente  se frustra.

O que me leva à conclusão que o que eu – uma parte de mim – queria mesmo era estar escrevendo ficção. Mas não consigo. Tem sempre uma merda a impedi-la, seja a textura da sobrevivência, incluindo o jornalismo déja lido, que é preciso fazer pra ganhar dinheiro ou bate aquela preguiça INFINITA, não, por favor, tudo menos escrever um conto ou romance ou novela, um serviço do caralho, um trabalho do cão, de retorno pra lá de incerto e novamente voltamos à grana. Tudo porque continuo fugindo dos fatos principais. Ou seja, de mim. Dessa parte de mim. E uma vez que a literatura exige honestidade absoluta consigo mesma, virei uma hipócrita exemplar.

O fato é que, ao longo dos anos, imperceptivelmente, foram se depositando dezenas de camadas e camadas grossas, densas, entre mim e a verdade lá no fundo a ser dita: as palavras que não quero dizer porque não quero ouvir. Posso imaginar que essa parte de mim deve andar furiosa, sapateando no porão. Uma criatura de dar medo. Sufocada, calada, arrolhada há anos. Décadas.

É. Não vai ser nada fácil. Servicinho dobrado: fazê-la emergir e escrevê-la.

Aceitá-la novamente como minha.

(Mais tarde)

Existem coisas que não têm remédio.

Minha irmã, por exemplo, a impossibilidade de conviver com minha única irmã após a morte da minha mãe, e já falta tão pouco. Depois dos cinquenta, esta foi a derradeira ilusão horrivelmente desfeita, pra começar porque que não a julgava uma ilusão, ao contrário, era a minha mais sólida certeza oculta, uma certeza absoluta (eu devia ter desconfiado) de que ela sempre estaria lá, houvesse o que houvesse, o velho royal street flush debaixo da manga. E vice-versa, naturalmente, eu também estaria firme como uma rocha absoluta, a nossa pedra de Roseta. Traduzindo as dissonâncias da alma, os vários idiomas do afeto, da compaixão, da saudade, das lembranças e esquecimentos, das vozes e silêncios, do entendimento sem palavras.

Mas agora o “absoluta” botou um pouco as coisas em seus devidos lugares, ou seja, em nosso mesquinho plano relativo – aliás,  eu vivo esquecendo a linha de terra –  assim a solidão prevista para um futuro muito próximo quanto avassalador já não é tão terrível, fica mais suportável.

Mas continua irrevogável. Entende?

Voltando ao passado adolescente, tinha um livro, tipo zen-yes, cujo personagem dizia só saber fazer três coisas na vida: jejuar, esperar e pensar. Bom. Comparando com o sujeito, jejuar é o que mais sei fazer, porém com muito speed, então aí meio que não vale; esperar, nem pensar! Devo ter sido inventada junto com a ansiedade, assim, fundidas no mesmo bloco fremente; quanto a pensar, hum, é outra velha merda: só penso legal escrevendo, mas como nas últimas décadas andei escrevendo bem pouco, donde se conclui que tenha me tornado uma espécie de super-id- inflado a pulsar more,more,more. Consumindo qualquer coisa desde que seja MUITO.

Mas é claro que sou atingida por soluções geniais – só que não sei explicar como.

Isto é pensar? Isto é saber? Isto é viver? (olhe, não precisa responder, em primeiro lugar porque são questões retóricas). E cá está você, encurralada por um bom tempo, meu bem.

A propósito: o que andou fazendo realmente de importante nos últimos vinte anos a não ser beber, se dopar, se iludir, ergo contrair uma maldita hepatite C, e aí está você: com um ano inteirinho (o tempo de 48 injeções de interferon com o poético nome de “pegasys”) de sobriedade absoluta (um dos raríssimos casos em que esta palavra de fato se aplica) pela frente pra descobrir o que fez da puta da vida.

Uma oportunidade de ouro. Rara mesmo. Então, me vêm aquelas frases tipo: “Deixe toda a ilusão e toda a esperança do lado de fora e entre!” (inscrita na porta do inferno, assim como em todas as redações), ou “o trabalho liberta!” (afixada ao portão de todos os campos de concentração).

É o que eu chamo de pensar pelo lado positivo.

(Ao anoitecer)

Quatro resoluções (ou pré-receituário pra invocar as musas, digo, musos)

1) Estabelecer uma rotina;

2) Escrever sem plano definido e

3) Qualquer merda que vier à cabeça (e, uma vez que “qualquer idiota pode ser espontâneo”, segundo Pound, o três significa não inibir nenhum conteúdo, não exigir perfeição formal de primeira, a espontaneidade é o ponto chave [e, lá na frente, se merecermos, isto implica em encontrar o “tom”]. Já a idiotice, a gente deixa pra Ezra Pound).

4) Examinar permanentemente  suas razões: jamais mentir pra si mesma. Como se não estivesse fazendo ficção.

(Na manhã seguinte)

Rotinas. Sempre tive horror delas. Quando pintava, eu escrevia e pronto. Pintando, eu sentava, mandava bala e crau, estava feito. Rotinas, jamais! Então, foi acontecendo da coisa pintar e você, sabendo que ela estaria sempre à disposição, começou a adiar. Depois. Amanhã. Mais tarde. Outra hora. Sábado. No Carnaval. Antes do Natal. Nas férias, sem falta. Adiava, adiava. Sentar pra escrever irritava, dava dor de barriga, exigia rituais cada vez mais complexos – uma das tantas formas de adiamento –, sem contar que sou PHD pós-doutora livre docente em “deixar prá lá”, várias medalhas de ouro olímpicas em “livre-se disto!”, “esquece” e por aí vamos.

Então, um dia, um dia não, alguns anos mais tarde, a coisa parou, sumiu, dançou, não tava em parte alguma. A voz se calou. Durante anos tentei viver com isso, pensando, não vou correr atrás, acreditando, uma hora ela volta, rezando, mansinha. Não voltou.

O fato é que não foi tão difícil viver com isso por MUITO tempo por que:

a) eu ODEIO enfrentar meus sentimentos (antes a morte, antes uma cirrose rápida) e para escrever, necessariamente, minha nêga, é preciso encarar geral as paixões e seu féretro de consequências humilhantes. Tenho uma teoria de que virei escritora para conseguir lidar com minhas emoções e não vice-versa. Quem domina as próprias paixões vira presidente, papa, banqueiro, empresário, ministro, fazendeiro, traficante, fabricante de armas;

b) seja por deformação profissional ou falha de caráter ou vantagem absurdamente adicional, quando escrevo ficção, sou capaz de parar a qualquer momento, fechar o caderno, desligar o computador e esquecer completamente, não pensar mais nisso, ir fazer outra coisa, e no dia seguinte (se não estiver de ressaca) retomar o texto numa boa, como se a coisa tivesse ficado ali, em suspenso, me esperando. Como eu escrevia sempre, havia essa espécie de acordo entre o consciente e o inconsciente.

Em desespero, tento agora – após séculos de silêncio – a porra da rotina. Tem que dar certo (não sei se a coisa volta, não sei, não sei, NÃO SEI!). Qualquer semelhança com magia propiciatória não é mera coincidência, afinal é preciso propiciar os deuses. E deusas. Que, no meu caso, devem andar putíssimos, posso até imaginar.

Mas também é preciso que eu, o consciente, tome a iniciativa, dê os primeiros passos no sentido de retornar a eles:

- Através das rotinas, uma, duas horas diárias, eu lhes dou meu tempo;

- O fato de escrever sem um plano definido, sem premeditar tramas e histórias até porque ainda não sei se o quero dizer é o que precisa ser dito: ambos terão de ser uma só e a mesma coisa. Mas seja novela, romance ou receita de bolo, eu não conto – eu e minhas razões mesquinhas.

Terá que ser importante para todo mundo. E para sempre.
("publicado originalmente em http://congressoemfoco.uol.com.br")

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