Coluna do Mirisola

David Bergman Cardoso

“Consta que a pornochanchada era uma válvula de escape forjada pela repressão: os milicos acreditavam que liberando a putaria, os ‘homens-de-bem’ iriam se esquecer da política”

Marcelo Mirisola
Passei a semana no Centro Cultural da Caixa Econômica Federal, que fica na Almirante Barroso, largo da Carioca. Belas tardes vendo pornochanchadas produzidas nos anos setenta. Minha alma – ainda – não se livrou dessa década. Eu tive a excentricidade de ser criança nos 70. Qualquer imagem de Variant bege, som de vitrola arranhada, um gol de Paulo Cézar Caju, qualquer ruminação ou gíria dessa época, por mais singela ou tosca (sobretudo tosca), tem o poder de me causar um turbilhão que sempre é a mistura de perplexidade com um sentimento repulsivo de ternura e tempo desperdiçado.

O cenário dos melhores filmes da mostra é o Rio. As imagens do Rio de Janeiro no começo dos 70 e, especialmente o Vidigal quase intacto, tiveram para mim um impacto muito maior, foram muito mais chocantes e obcenas do que os filmes pornográficos da mostra – que de pornográficos não tinham nada, aliás. Ao contrário, filmes demasiado humanos: um peitinho alegre aqui, uma bunda caída acolá, uisquinho pra relaxar. O que me chocou e tornou as coisas obscenas foi o fato de que eu sabia que o Vidigal ia ser corrompido pelo futuro, e que eu também seria levado morro abaixo junto à enxurrada de cinismo e silicone (... saudades dos peitinhos alegres à la carte) e pelo tempo afinal que é erosão, leva no contrapé, mata e nunca mais é o mesmo. Como se o Vidigal 40 anos depois fosse uma cicatriz aberta no meu próprio peito, como se eu tivesse recebido um implante (ou o futuro, chamem como quiser) que seria rejeitado de antemão dentro desse peito – que jamais me pertenceu.

Essa semana não foi fácil. Que país era aquele? Que sexo era aquele? Dois filmes, Giselle e Possuídas pelo Pecado, o primeiro de Vitor di Mello e o segundo, cuja produção, atuação e canastrice ficava por conta de David Cardoso e cujo roteiro é assinado por Jean Garret, não me saem da cabeça. Ambos são inviáveis hoje em dia, não pela péssima qualidade mas pela singeleza, pela proposta “ inopinada e subversiva” que encerram em si mesmos, e por causa, claro, da correção política que hoje assombra, vigia, processa e pune quem se atreva a não comungar de seu catecismo. Como se David Cardoso, que também deve ter dado seus pitacos no roteiro (a confirmar) e Carlo Mossy, depois de passadas quase quatro décadas, tivessem se transformado respectivamente em Truffaut e Ingmar Bergman – para mim, todos eles ficaram congelados naqueles anos distantes, absolutamente inviáveis hoje em dia.

A equação é fácil de entender. O tempo e o politicamente correto os nivelaram, e nivelar é anular. Virar nada. Isso é revoltante e surpreendente. No primeiro filme, um empresário pedófilo mantém um haras de finais-de-semana, onde sua mulher, a filha e o sobrinho são amantes do caseiro vivido por Carlo Mossy (também diretor, produtor e ator) que come todo mundo e evidentemente é o herói da trama. Eu não estaria exagerando se dissesse que, nesse caso, a régua do politicamente correto transformou Teorema - que é nada mais nada menos que o ideal subversivo de Pasolini - numa pornochanchada rural.

Ah, mais uma coisinha. O empresário, que também foi amante do pai do caseiro e que banca toda a sacanagem, é pedófilo. Vejam só, pedófilo. Na boa. Não diria que esse dado é algo que passa despercebido no filme, mas é um “lance a mais”. O menininho entra e sai do gabinete do doutor o tempo todo, abrindo e fechando o zíper – depois ouvimos algumas recriminaçoes da mãe em off, nada de muito importante. Enquanto isso, Giselle, a madrastra e o sobrinho veadinho são currados numa emboscada. E por aí vai. Tem até o “lance” (mais um lance) de um médico negro, lá na cobertura de Ipanema, que curte ser amarrado e açoitado pelos amigos brancos, ricos, depravados, sádicos, inocentes e felizes da vida.

Outros tempos, acho que Lázaro Ramos nem era nascido.

Em Soninha Toda Pura, Carlo Mossy usa maconha para dar um gás, aumentar a coragem. A intenção dele – vejam só - era es-tu-prar Soninha Toda Pura, com maconha na cabeça! Tempos puros.

Pensando bem, estamos falando apenas de filmes toscos e bobocas, rodados em plena ditadura Geisel. Naquela época, as pessoas fumavam dentro do avião, bebiam, jogavam o lixo pela janela do carro e liam Pasolini, na mais pura e justificável – pasmem - ingenuidade. Noutro filme da mostra, Amada Amante, Carlos Imperial é o escrotão-mór do pedaço, o tarado da luneta: para quem não sabe, Imperial é autor de um dos versos mais belos de todos os tempos da Música Popular Brasileira, “Minha asa preta se solta/ vou ver Cristina”. Imperial é o resumo dos anos 70. A tecnologia precária e a censura dos militares permitiam isso, permitiam Chico Buarque e muito mais.

O mais chocante é que hoje, diante de tanta informação, diante da tecnologia e da pornografia acessível a qualquer criança, sobretudo diante das patrulhas politicamente corretas que apontam o dedo, vigiam e execram, e diante da obrigação de sermos pornográficos – apesar do trânsito caótico e apesar de tudo - e felizes, diante dessa bandalheira triste e do Vidigal ter virado uma favela pra gringo fotografar, o mais impressionante é que David Cardoso e Carlo Mossy tenham se transformado em intelectuais de primeira linha. Lavoisier sacana, o pai da correção política? Nada se perde, tudo se transforma ... em boca do lixo? Isso é muito intrigante. Alguém tinha que estudar o fenômeno, sei lá. Glauber Rocha virou fumaça. Em as Possuídas pelo Pecado, David Cardoso e Jean Garret provavelmente – e sem querer - apenas e tão somente no embalo da época em que tiveram a felicidade de filmar, por inércia mesmo, conseguiram ajambrar um personagem que hoje, descontado o texto deles mesmos, é digno do melhor doutor Camarinha de um Nelson Rodrigues.

Nelson Rodrigues – a propósito e aliás - seria um obscuro blogueiro se vivesse nos tempos recicláveis, Calligaris e babaca que vivemos. No máximo, ganharia alguns inimiguinhos anônimos, e estaria agonizando no facebook e no tuíter. Teria o mesmo destino de Bergman, Glauber Rocha e Truffaut, ou seja, viraria pó, David Cardoso, coisa nenhuma.

Bem, eu falava de As Possuídas pelo Pecado. Ou melhor, não vou falar de As Possuídas pelo Pecado, porque se eu for puxar pela cena no extinto terraço do aeroporto de Congonhas, quando madame embarca para a Europa e encomenda a morte do marido-corno para o amante e chofer vivido por David Cardoso, bem, se eu fizer isso, é capaz de não aguentar e sucumbir diante de tamanha ingênuidade, nostalgia, tesão e o sol cor-de-laranja debruçado sobre a cidade em 1976.

O terraço do Aeroporto de Congonhas é demais para mim. E os anos 70 definitivamente são muita areia pro caminhãozinho desse povo que vibra com as performances de Lady Gaga. Aqui vai um palpite: essa moça nasceu muito tempo depois, mas deve ter uma leve desconfiança que vive, é refém e habitante dessa década tosca, e talvez por isso mesmo faça tanto sucesso. Valer dizer: ela envelheceu antes do tempo (reparem) e também não significa nada.

Em as Possuídas pelo Pecado até o Agnaldo Rayol fuma e joga lixo pela janela do carro, enche a cara, dá pinta de machão, come as putas do La Licorne na base do galanteio e – ainda bem ...- engana a gente. Consta que a pornochanchada era uma válvula de escape forjada pela repressão, a idéia era liberar a sacanagem: os milicos acreditavam que liberando a putaria (que de putaria não tinha nada...) os “homens-de-bem” iriam se esquecer da política. Eu creio que agora, passados quase 40 anos, o efeito causado foi mais ou menos o desejado. Talvez tenham ido além. Os milicos apontaram na direção da galinha e acertaram os ovos de ouro. Só que esses ovos foram modificados, ou melhor, corrigidos politica e geneticamente, e viraram coisa nenhuma.

E daí surge a pergunta. Uma pergunta que não quer calar. Se o politicamente correto transformou involuntariamente Bergman em David Cardoso e Truffaut em Carlo Mossy, por que não poderia – agora eu é quem estou constrangido com a praga que vou jogar, valha-me Lavoisier! - transformar Jair Bolsonaro no próximo prefeito do Rio de Janeiro?

Marcelo Mirisola - Considerado uma das grandes revelações da literatura brasileira dos anos 1990, formou-se em Direito, mas jamais exerceu a profissão. É conhecido pelo estilo inovador e pela ousadia, e em muitos casos virulência, com que se insurge contra o status quo e as panelinhas do mundo literário. É autor de Proibidão (Editora Demônio Negro), O herói devolvido, Bangalô e O azul do filho morto (os três pela Editora 34) e Joana a contragosto (Record), entre outros.

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