Análise

O fundamentalismo do Estado cubano

Eugênio Bucci - O Estado de S.Paulo
Ao final do sexto congresso do Partido Comunista Cubano (PCC), anteontem, revelou-se a verdadeira face da renovação prometida pela ditadura que há 52 anos manda na ilha. No lugar do velho comandante Fidel Castro, que agora saiu formalmente do poder, entra o irmão dele, Raúl Castro. Raúl é um pouquinho mais novo que Fidel: tem 79 anos de idade. Como segundo homem na hierarquia partidária foi nomeado José Ramón Machado, que é um pouquinho mais idoso que Raúl: tem 80. Nada contra a maturidade, que traz ensinamentos e até sabedoria. Em Cuba, no entanto, o Estado geriátrico é o reflexo do envelhecimento não das pessoas, mas do regime. Os sonhos de juventude viraram pesadelo nesse fim de noite. A renovação anunciada no congresso dos comunistas cubanos é a antessala da morte. Física e política.

Na década de 1950, Raúl e Ramón davam tiros em Sierra Maestra. Agora, são linha dura e não lançam sinais seguros de liberdades democráticas em Havana. No plano econômico, o capital deve conseguir seu visto de entrada nos domínios dos Castros, mas por ora vai mandar para lá apenas o seu lado selvagem: desemprego, especulação, insegurança. O autoritarismo cubano avança na direção de juntar os dois mundos, o socialista e o capitalista, pelo que há de pior em cada um deles, e faz isso graças ao apoio dos que veem na decrepitude do PCC o farol e a tábua de salvação dos ideais de fraternidade socialista.

Cuba só se converteu na tirania que é hoje - caquética, mas de pé - porque soube transformar a militância que a sustenta, dentro e fora da ilha, numa seita religiosa. Há décadas, amaldiçoou o pensamento crítico, baniu toda divergência, fez da imaginação um vício proscrito e, no vazio deixado pelo que havia de inquieto na revolução, instalou o dogma e a obediência cega. Criticar Fidel virou pecado mortal. O silêncio obsequioso diante do sofrimento e da humilhação que ele impôs e impõe ao povo cubano virou sacerdócio. Ser socialista virou sinônimo de crer na infalibilidade do ditador. Foi assim que a ditadura confinou sua gente, com a cumplicidade de muitos que se calaram, por medo de serem vistos como agentes do imperialismo. O imperialismo é a encarnação do demônio.

Que atitude pode ser mais religiosa, mais fundamentalista do que essa?

Não foi por acaso que o Estado cubano assumiu os contornos de um Estado fundamentalista. Na Constituição da República de Cuba, o poder não emana do povo - apenas parte do poder emana do povo. A parte mais importante vem do alto, vem do partido, que, atenção, não tem as portas abertas para qualquer cidadão: ela admite como integrantes apenas aqueles que são escolhidos não pelo povo, mas pelos que já são integrantes do próprio partido. Assim, em Cuba, quem dirige o Estado e a sociedade (ou os modos de viver) é o partido - não é o cidadão ou um representante direto do cidadão.

O artigo 5.º da Constituição cubana não deixa dúvidas quanto a isso: "O Partido Comunista de Cuba, martiano (de José Martí)e marxista-leninista, vanguarda organizada da nação cubana, é a força dirigente superior da sociedade e do Estado, que organiza e orienta os esforços comuns na direção dos altos fins da construção do socialismo e do progresso na direção da sociedade comunista".

Tanto é assim que as decisões sobre os destinos do povo cubano não emergem de uma instância republicana, de Estado ou de governo, mas do partido, uma elite fechada, que é "a força dirigente superior". Em Cuba, o partido é a fonte da verdade, mais ou menos como - a comparação é inevitável - ocorre com na República Islâmica do Irã. Também no Irã a verdade superior reside numa instância que paira acima dos órgãos de Estado e de governo, integrada por sábios religiosos (a função que em Cuba cabe ao partido no Irã é exercida pelos sábios da fé). Esse princípio é explícito em diversos artigos da Constituição iraniana. O artigo 13 por exemplo, afirma que o presidente é a autoridade máxima no país, ficando abaixo, apenas, da autoridade religiosa. Ou seja: como em Cuba, também no Irã não é todo o poder que emana do povo. Apenas uma parte do poder emana do povo, e essa parte é hierarquicamente inferior à outra, aquela que não emana do povo.

As semelhanças de estrutura entre as duas Constituições não são poucas nem pequenas. Registremos apenas outras duas: o princípio do expansionismo internacional da doutrina que professam e a identificação clara do inimigo, cuja figura maligna serve para justificar a supressão das liberdades internas. Na Constituição cubana, o artigo 12 consagra "os princípios internacionalistas e anti-imperialistas", pois, como se lê no preâmbulo, "só o socialismo e o comunismo" conduzem "à inteira dignidade do ser humano". Na Constituição do Irã, fala-se na "completa eliminação do imperialismo" e em "expansão e fortalecimento da fraternidade islâmica" e na "cooperação pública entre todos os povos", uma vez que, como se lê no artigo 11, "todos os muçulmanos formam uma só nação".

Para os tiranos, ninguém é mais valioso que o inimigo e nenhum sentimento é mais cultuado que o medo do inimigo. O povo deixa-se oprimir quando tem medo do tirano e do inimigo do tirano. Por isso, a ditadura em Cuba sempre adotou o discurso de país em guerra. Precisa da retórica de guerra para prender opositores. Sem inimigo, o ditador perde o emprego.

É verdade que, no encerramento do congresso do PCC, Raúl declarou que o principal inimigo do partido, agora, "são nossas próprias deficiências". Como todo líder religioso, ele propõe um exame de consciência. Isso não significa, porém, que o imperialismo tenha perdido o posto de vilão oficial. Significa apenas que a ditadura se deu conta de que envelheceu, mas não desistiu. Significa que mais perseguições internas, devidamente inquisitoriais, estão a caminho.

JORNALISTA, É PROFESSOR DA ECA-USP E DA ESPM

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