Estilo de vida

Boa Morte

Carlos Brickmann no Observatório da Imprensa
Foi uma figura tão fascinante que dois grandes repórteres, José Maria Mayrink e Sérgio Vaz, escreveram duas matérias esplêndidas sobre sua morte, cada uma abordando aspectos diferentes de sua personalidade. Não foi fácil: este colunista conviveu com Antoninho Boa Morte, apelido de Antônio de Carvalho Mendes, redator da coluna de "Falecimentos" de O Estado de S.Paulo, durante mais de dez anos; manteve com ele relações cordiais, extremamente amistosas; e jamais soube algo de sua vida particular. Não sabia sequer que foi ele o autor da sugestão de que os jornais da empresa publicassem poemas de Camões no lugar de matérias censuradas pela ditadura (houve uma exceção, logo no início, quando saíram versos do Y-Juca Pirama, de Gonçalves Dias; e o Jornal da Tarde publicava receitas culinárias – que, como nunca eram do tamanho exato da matéria censurada, nunca davam certo). Antoninho levou para o jornal seu exemplar de Os Lusíadas, e já mandou imprimir versos de vários tamanhos, para adiantar o serviço.

Antoninho Boa Morte era um tipo raro de jornalista: adorava o que fazia (e, quando um colega lhe pedia para incluir algum nome na coluna de "Falecimentos", ele gentilmente o atendia e, mais gentil ainda, comprometia-se: "Se precisar da coluna, é só falar").

Adorava a empresa em que trabalhava, e jamais se imaginou trabalhando em qualquer outro lugar. Adorava os proprietários da empresa – e isso numa época em que a família Mesquita estava permanentemente presente na casa, à frente dos trabalhos, cuidando dos jornais e da rádio com aquele cuidado e carinho meticulosos que muitas vezes geram atritos com os funcionários.

Não, não era temor reverencial. Antoninho Boa Morte não gostava, por exemplo, de Augusto Nunes, poderoso diretor de Redação do Estado; e não hesitava em proclamá-lo sempre que possível, sem medo de consequências (e tanto Augusto quanto seu principal executivo, o gentleman Ricardo Setti, sempre deixaram para lá). E se considerava um membro da família Estadão.

Nos velhos tempos do Estadão, não era preciso ler o editorial nem o noticiário sobre um recém-falecido para saber qual a opinião do jornal sobre ele. Bastava passar os olhos pela coluna do Antoninho: se era gente da Casa, saía matéria em corpo 12, com destaque, texto caprichado ("descendente de tradicionais estirpes paulistas"). Se era persona non grata, corpo 7 e olhe lá. E o texto sairia o mais convencional possível: "Faleceu ontem, nesta capital, o sr. (...)".

Depois de ler as grandes matérias de Mayrink e Sérgio Vaz, hoje este colunista sabe um pouco mais sobre Antônio de Carvalho Mendes. Ele vivia sozinho, comprava alimentos todos os dias. Aos 76 anos, cozinhava para si, arrumava e limpava seu pequeno apartamento. Nem geladeira usava, por considerá-la desnecessária. Tinha uma ex-esposa, com quem trocava telefonemas, um filho, uma neta que amava de paixão. E um jornal ao qual dedicou, com prazer, a sua vida.

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