Ramalhete de "causos"


Farinha regada

José Ronaldo dos Santos
Em 1981, em pleno mês de agosto, quando sabiás – dos pretos!- faziam festa nas caneleiras, fui fazer uma visita ao Francisquinho e aos seus, no Sertão do Ubatumirim. Cheguei cedo e vivi um dia intenso naquele lugar. Comecei este texto assim (recordando-me de um dia relativamente distante) porque, nesse final de semana, participando de uma festa de aniversário, presenciei um fato que despertou reminiscências daquela fabulosa família.

Foi assim: cheguei cedo, quando no local uma dúzia de crianças se divertia de pega-pega. De vez em quando o pai do aniversariante servia a todos uma rodada de suco de groselha. Crianças continuaram chegando. O calor era intenso; não parava cheio o caldeirão de groselha. A sede era tamanha que tudo parecia um conta-gotas se esgotando infinitamente em tijolos secos. E tome mais uma vasilha do suco! E mais uma! E outra!

Desisti de contar, mas afianço que, em pouco mais de meia hora, naquele corre-corre, umas dez viagens de entra-e-sai fez o tal caldeirão. Pensei: assim é festa de pobre: sem guaraná. Confesso que, se tivesse dinheiro, teria ido até o boteco da rua e comprado uns refrigerantes diferentes.

De repente o chefe da casa percebeu que na minha garrafa não havia mais cerveja. De onde estava deu a ordem para me virar; as geladeiras (isopores com gelo) não estavam tão difíceis de serem encontradas. Abri um: só refrigerantes. O segundo... idem. No terceiro estavam as estupidamente geladas. Enquanto saboreava o bendito malte, fiquei refletindo o possível motivo de esconder os refrigerantes da criançada. Nisso vem outra rodada de suco de groselha; eu estava vendo a hora dos pequenos ficarem numa só vermelhidão. Logo chegou o bolo, digo o bolinho. Era bolinho mesmo! Aí apareceram refrigerantes! Todos bateram palmas. Não vi ninguém conseguir tomar mais de um gole da novidade. Era muito líquido para gente miúda; nem espaço havia para bolo. Comeram naquinhos. Só para encurtar: do bolinho ainda ficou mais da metade sobre a mesa enfeitada de papel crepom. Entendi tudo: encher os convidados com groselha foi uma estratégia para economizar nos refrigerantes e no bolo.

Voltando naquele dia no Sertão do Ubatumirim, percebi que as famílias tinham vários cachorros. Na casa do meu anfitrião eram cinco vira-latas. Calculei que, só em comida para aquele tanto, deviam gastar um bom dinheiro. Perguntei para confirmar minhas suspeitas.

- Que nada, Zé! A cachorrada come farinha! É só! Vem ver como eles comem! Ainda falando, o Francisquinho guiou-me até nos fundos, onde ficava a casa de farinha. No chão estava uma cuia grande: era o prato dos bichos. Primeiro foi chamado o “Duque” para se alimentar. Atenção ao método daquele tempo: primeiro enchia a cuia de água; depois era jogado uma mão de farinha que imediatamente afundava. O animal desesperadamente enfiava a focinho ansioso para alcançar a massa branca. Ou seja, tinha que tomar muita água antes de alcançar o mais importante para matar a fome. Depois de tanto líquido, aquela mãozada de farinha era o que bastava para o cachorro. Depois daquele foi chamado o “Rex”, o “Brejeiro”, o “Caolho”... Um a um vinham todos e cumpriam o mesmíssimo ritual. Por fim, assim falou o dono da cachorrada:

- Tem que fazer assim; se não regar, não há farinha que vença.

Sugestão de leitura: A águia de Sharpe, de Bernard Cornwell.

Boa leitura!

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