Coluna da Dra. Luiza Eluf

Adeus, amigo

Luiza Nagib Eluf
Meu marido sempre acorda antes de mim, pega os jornais, lê tudo rapidamente e vem me contar as notícias do dia, mastigadas e digeridas. Claro que faço minhas leituras depois, mas ele gosta de ser o primeiro a saber de tudo para assumir o papel de arauto das boas novas e, pior, das más notícias também. Foi assim que no dia 11 de fevereiro último ele abriu a porta do quarto ainda muito cedo, despertou-me sem pena, olhou-me com fisionomia pesarosa e disse: “tenho más notícias”. Eu respondi “não me conte, quero dormir”; ele insistiu “Mauro Chaves morreu. Ontem”. Mostrou-me a fotografia de meu amigo no Estadão: “1942-2011”.

Foi surpresa para nós, não sabíamos que Mauro andava tão doente. Com seu jeito animado e risonho, ele jamais comentava sobre seu estado de saúde. Protestei que ele ainda era jovem para deixar essa vida, que era um dos grandes valores do Brasil, um jornalista, um artista, escritor, dramaturgo, comentarista político, enfim, seu desaparecimento representava uma perda enorme para a nação. Como iríamos ficar sem as opiniões de Mauro no jornal da TV Gazeta e no jornal O Estado de SPaulo? Quando me calei, vencida pela impossibilidade de mudar as coisas, vi nos olhos de meu companheiro de tantos anos a sua preocupação comigo. Ele fica passado quando estou triste. “Vou levá-la ao velório, não se preocupe”. Abriu a porta e me deixou sozinha.

Khalil Gibran diz na obra “O profeta” que quando nos separamos de nosso amigo não devemos nos afligir, pois o que amamos nele pode tornar-se mais claro na sua ausência, como para o alpinista a montanha aparece mais clara vista da planície. Foi assim que os momentos vividos na companhia de Mauro Chaves começaram a retornar da memória, como um filme rodando de trás para a frente.

Certa vez, jantávamos com nossas famílias e contei a Mauro sobre o livro que acabara de escrever, uma obra de ficção que chamei de “Retrato” e sobre a qual ele posteriormente escreveria a melhor resenha que alguém que já fez a respeito de uma obra minha. Na ocasião, porém, eu ainda lhe explicava a trama, os personagens, o desfecho. Mauro não havia gostado do título, afinal, ele fora mestre em denominar seus próprios trabalhos de forma singular, seus artigos, seus livros, suas peças teatrais tais como “Alvará de conservação”, “Adaptação do funcionário Ruan”, “Contravérbios”, “Capuzes negros”, “O dólar azul”, “O virulêncio”, dentre tantos outros títulos. Argumentei que não havia encontrado outro nome para meu primeiro livro de ficção e que provavelmente seria “Retrato” mesmo. Mauro achava que retrato não dizia nada e, ao final de muita argumentação dos dois lados, ele queria por todos os meios que meu livro se chamasse “A história do filho drogado da mãe advogada feminista”... Aquela lembrança me fez rir em meio à tristeza do momento. Até hoje não sei se ele estava brincando ou falando seriamente. Afinal, Mauro era um gozador requintado, fato que me impedia de perder sua coluna de artigos de jornal.

Mauro não simpatizava com as feministas, mas dizia abrir exceções para mim e para a renomada jornalista paulista Maria Lídia Flândoli, sua grande amiga também.

O jeito um tanto paternal que ele tinha para comigo só podia resultar do fato de ter sido colega de turma de meu pai, Alfredo Nagib, na Pontifícia Universidade Católica, onde ambos cursaram Direito e se tornaram amigos. Meu pai morrera em 2009 e ainda não estava curada dessa perda. Tudo somado fazia com que meu coração se partisse um pouco mais a cada minuto. Ocorreu-me, novamente, Khalil Gibran; é para suas palavras que meu pensamento se volta nos momentos de tristeza. Ele diz que nossa dor é o rompimento do invólucro que encerra nossa compreensão; assim como a semente da fruta deve se quebrar para que seu coração apareça perante o sol, deste mesmo modo devemos conhecer a dor; grande parte de nosso sofrimento é por nós mesmos escolhida. Ou seja, melhor lembrar o lado bom das coisas.

Mauro foi um bon vivant. Escreveu tudo o que quis, pintou seus quadros, criticou, elogiou, apreciou vinhos, cultivou amigos, criou filhos, amou, odiou e, principalmente, riu muito. Riu dos outros e de si mesmo, divertiu-se, emocionou-se, cantou, dançou.Era feliz morando com sua linda esposa Carmem e a filha caçula que o encantava. Como todo mundo, sofreu reveses, mas soube lidar com eles. Agora, do outro lado da vida, não deve ter nada de que se lamentar.

Infelizmente, lamentaremos nós a falta que ele fará.

Luiza Nagib Eluf é Procuradora de Justiça do Ministério Público de São Paulo. Foi Secretária Nacional dos Direitos da Cidadania e Subprefeita da Lapa na cidade de São Paulo. É autora de vários livros, dentre os quais “A paixão no banco dos réus” e “Matar ou morrer – o caso Euclides da Cunha”.

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