Cultura caiçara


Os crentes

José Ronaldo dos Santos
Eu cresci num período interessante no aspecto religioso do ser caiçara, quando as denominações cristãs (“crentes”) diferentes da católica estavam se fortalecendo. No centro, desde o final do século XIX, estava a Igreja Presbiteriana; na praia do Lázaro, no pé-do-morro, o templo cinza da Igreja Cristã no Brasil crescia e abria filial na praia Brava (da Fortaleza), onde os meus parentes se converteram. A questão que muitos faziam era: se Deus é um só, porque tantas igrejas diferentes?

Por parte do catolicismo, depois da passagem do padre alemão (padre João) que buscou integrar as comunidades isoladas do nosso município, logo após o concílio Vaticano II, o mundo caiçara, que já tinha as cônegas agostinianas, recebeu um frade franciscano por nome de Pio, cuja utopia tropeçava no paternalismo e na língua que o atrapalhou até o final da vida. O certo é que muitas pessoas conseguiram se integrar nos novos desafios, fora do mundo da subsistência corriqueira, graças ao apoio da ALA (Assistência ao Litoral de Anchieta), sob a ação das freiras (Glória, Laura, Marta etc...), e, da ASEL (Ação Social Estrela do Litoral), cujo agente principal sempre foi o frei Pio.

Gosto de contar causos do frei Pio porque sempre me atraía o seu sotaque e as suas atrapalhações nas palavras. Ainda era muito pequeno quando testemunhei muitos embates entre o religioso e o João Pimenta, o incréu da praia do Sapê (conforme a denominação de meu pai). Creio que eles adoravam se encontrar para se cutucarem com a vara da religião. E eu dei sorte de ser testemunha de muitas dessas ocasiões. Numa, por exemplo, logo após o frei ter dito que aquilo que o outro falava era heresia, fez o seguinte acréscimo: “Não. Não é heresia. Você não tem fé suficiente para ser herético”. O que o incréu disse? Ah! Pouca coisa! Somente que “Deus paira acima de nós como um tirano ou um monarca implacável. O ateu que o nega é o único dentre os homens que não blasfema”. Essas e outras citações, longe no tempo, permanecem vivas na minha memória desde quando a minha mãe apagava a última lamparina e a escuridão fervilhava de reflexões. Depois, eu aguardava as ocasiões para comentar os meus pensamentos com alguém. O meu tio Chico Félix sempre me escutava, além de acrescentar suas enigmáticas frases de pescador, tal como: “Apesar dos anzóis, das redes e dos cestos, a maioria dos peixes prossegue nas negras profundezas das águas seu roteiro sem vestígios, sem jamais se preocupar com os de sua espécie que se contorcem ensanguentados no tombadilho de um barco”. Depois, acrescentava: “Menino! Esse monte de gente falando de Deus não há de ser muito útil para o nosso povo, para os caiçaras. Também o João Pimenta, incréu e avaro como é, está pouco se lixando para a miséria que se alastra. Agora, católicos e crentes dizem que tudo é pecado, tudo é perdição. Você viverá um tempo pior que o meu, onde as nossas raízes serão apagadas muitas vezes em nome de religiões diferentes, mas adeptas de uma única divindade. Muitos ainda lucrarão com as nossas misérias. E, tenha uma certeza: os peixes morrem no seco”.

Será que ele se referia ao povo que, naquele tempo, já se afastava do jundu?

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Comentários

Saulo Gil disse…
O cristianismo sempre foi decisivo no desenvolvimento sócio-cultural dos homosapiens locais. Resta saber, passado mais de meio milênio, se o resultado foi desenvolvimento ou atraso.

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